de Paula 14/07/2021
O que são as trevas?
Não gosto de saber nada do livro antes de lê-lo, pois assim acho que minha experiência será mais valiosa e agradável, sem pré julgamentos nem nenhuma influência externa. Confesso que às vezes deixo para ler textos introdutórios como prefácios ao fim da leitura, a fim de me resguardar de qualquer informação constituída por um especialista que impacte na minha forma de ver a obra. Isso não se deve aos spoilers, porque sou daquelas que lê a última página do livro antes de iniciar a leitura. Foi assim que cheguei ao Coração das trevas. Pensei que fosse uma leitura fácil e rápida, se tratando de um livro curto, o que significa que eu não aprendi nada com o Kafka, no sentido de profundidade, mas estou levando o escritor tcheco como parâmetro de fluidez, mesmo com assuntos pesados como o tratado em Colônia penal. A primeira coisa que você que pretende ler Coração das trevas precisa saber é que essa é uma leitura árida, crua e nebulosa, muito embora tenha um grande charme estilístico. Não leia pensando que vai terminar numa tarde.
O que Conrad tenta fazer nesta obra é retratar o horror do Congo belga no viés de um europeu que vê os africanos como uma espécie de sub raça. Tendo isso em mente, é perceptível o caráter inovador da narrativa, assim como dialogar com as denúncias feitas e a realidade que conhecemos hoje sobre este continente e povo que tanto sofreram nas mãos prepotentes dos europeus e ainda sofrem. Digo isso porque pesquisei um pouco sobre a história quando terminei a leitura e percebi uma grande discussão válida sobre a exaltação de uma obra tida como antirracista que não o é de fato, considerando os diversos momentos em que os nativos são descritos, assim como seus costumes e sua terra. Mesmo assim, não deixa de ser uma obra importante de protesto contra os horrores vistos pelo autor e pelo narrador durante sua estadia nas mediações. O Congo viveu uma das piores histórias colonizatórias existentes, onde o Rei da Bélgica, um país sem cultura navegante alguma, decidiu e com diversos trambiques diplomáticos e jurídicos conseguiu este país africano para chamar de seu. Escravizou os negros, matou seus animais, destruiu sua cultura e paz em nome do progresso (obviamente europeu) e da cultura civilizatória tradicional do povo branco do hemisfério norte. Este rei, Leopoldo II da Bélgica foi um dos pensadores da partilha da África no Neocolonialismo (que culminou na Primeira Guerra Mundial) e defensores da libertação dos escravos em países como o Brasil, enquanto matava negros a torto e a direito em sua colônia extrativista - enfim, a hipocrisia. Esse é o cenário escolhido por Conrad para contar sua história.
Nada na narrativa é claro e de entendimento imediato. O leitor submerge na história conforme o narrador a conta e vai compreendendo a realidade obscura que permeia a colonização da África e a forma que o extrativismo é conduzido. Acompanhamos os ouvintes do barco do rio Tâmsa na expedição do jovem Marlow como capitão de um navio à vapor em vias fluviais no coração da África. Ele começa com uma analogia de quando a própria Inglaterra foi descoberta pelos romanos e a Neocolonização, seguindo sua experiência no rio em forma de serpente. É uma leitura pesada, forte demais nos seus elementos factuais, deixando um peso no estômago de qualquer pessoa que repudia o que foi feito com essas pessoas.
O coração das trevas tem diversos significados na narrativa, como a mata fechada, as trevas dos "não civilizados", até a crueldade do europeu com o povo nativo que é massacrado pelos poderosos, como o emblemático Kurtz. Ele é alguém que ouvimos falar, sabemos no que acredita, mas não sabemos nada com profundidade e mesmo assim percebemos o perfil do extremista que prioriza por eliminar o diferente, mesmo que essa seja sua fonte de renda.
As discussões são profundas e remetem a diversos pontos, como antropologia, racismo e escravidão, filosofia e psicologia. É uma das obras mais emblemáticas em sua concepção e interpretação. São poucas páginas mas é gigante a sua importância.
Me lembrei um pouco do capitão Walton de Frankenstein ao ler essa obra, que nada tem de exaltação às aventuras marítimas. Kurtz é soberbo e cheio de si como o Victor, outro paralelo importante que fiz no decorrer da leitura. Acho importante como o Conrad conseguiu discutir o assunto de forma cirúrgica, considerando a exaltação que tantos fazem a monstros como o francês que fala inglês e tem nome alemão.
Essa é uma obra necessária, por isso é um grande clássico de dimensões colossais em suas discussões, mesmo que não muito assertivas, mas com certeza à frente da sua época.