anicca 24/03/2023
"Voar, voar, subir, subir"
Em "Um teto todo seu", Virginia suscita questionamentos baseados na relação entre a literatura e o gênero feminino até o século XX. A iniciativa de escrever a presente obra foi fomentada pelo convite que recebeu para palestrar sobre "As mulheres e a ficção".
À sua época, mulheres serem permitidas de frequentar a universidade constituía ainda uma inovação. Tanto que, quando reunindo material de pesquisa para embasar suas palestras, foi proibida de circular em determinado espaço acadêmico por um guarda, pois aquele claramente não era um espaço destinado a ela ? já uma escritora consolidada. É nesse momento que a figura do gatinho sem cauda aparece, e o subtexto ganha força.
Virginia teve a oportunidade de conhecer as refeições que eram oferecidas tanto nas universidades voltadas para homens quanto nas voltadas para mulheres. Percebeu que, no segundo caso, os recursos materiais eram tremendamente escassos, desde a infraestrutura das instituições ao cardápio servido. Assim, além do segregacionismo entre gêneros, havia também uma profunda distinção de investimentos no âmbito educacional. Consequentemente, o feminino continuava sobrepujado em face de sua suposta inferioridade.
Mas como esperar resultados semelhantes se as oportunidades eram essencialmente desfavoráveis para mulheres? É uma dinâmica que se assemelha à punição dada a Tântalo.
Nesse sentido, Virginia salienta que é fundamental perscrutar quais fatores interferem na discrepância entre os gêneros. Para tanto, usa como ponto de partida a seguinte colocação: uma mulher jamais seria capaz de exprimir a genialidade de Shakespeare?
A problemática subentende que há uma incapacidade inata a elas e, portanto, é fatídico que nenhuma poderia escrever como o bardo ? quase como se obstáculos fossem inexistentes e dependesse meramente da escolha. No entanto, ao investigar a questão, Virginia conclui que as razões adjacentes a tal "dificuldade feminina" são mais profundas do que se poderia imaginar a princípio. Ela ressalta as condições que as escritoras de meados do século XVIII enfrentavam, tais quais controle reprodutivo, submissão paterna e então marital, dependência quase que absoluta de um e depois do outro, condicionamento comportamental e reprovação social contra qualquer atitude performada fora do ideal se feminilidade. Havia também casos abertos de hostilidade (manifestados por familiares e críticos) frente ao interesse de escrever, grotescos como Monteiro Lobato comparando as pinturas de Anita Malfatti às de internos manicomiais. E, mesmo no século seguinte, escreviam na sala de estar comum aos membros da família, daí o título deste ensaio.
Além de tantos pontos limitantes, é importante lembrar que mulheres não podiam ler, viajar e realizar atividades (fossem lazer ou obrigações) como os homens o faziam. Pertencer ao estrato social mediano significava uma série de restrições por si só, o que dizer do basilar?
Estendendo as colocações da autora, podemos pensar sobre quantas cientistas, em xadrez e compositoras eruditas conhecemos. Uma ideia corrente é de que mulheres não nutrem determinados tipos de interesse ? como dinossauros, esportes ou competitividade (a menos que seja contra suas semelhantes, manifestação de inveja). Não deixa de ser uma abordagem superficial e simplista, pois o meio em que o indivíduo nasce e cresce influencia diretamente seu modo de pensar, agir e ser.
Como sentir-se preparado se todo o mecanismo social (família, instituições escolares, mídia, figuras religiosas e até mesmo amigos) tenta te convencer do contrário? Alejandro Jodorowsky dizia que "pássaros nascidos em gaiolas acreditam que voar é uma enfermidade".
Atualmente, muitos dos entraves para a consolidação dos direitos das mulheres foram dissolvidos, e uma espécie de alternativa a esse histórico descaso pode ser percebida em alguns setores: em livros didáticos, tem-se a problematização de questões de gênero com ênfase em ética e direitos humanos; em literatura, percebe-se uma presença feminina marcante no cenário moderno e contemporâneo; no audiovisual, heroínas ganham filmes solo e temáticas como o movimento Me Too recebem indicações ao Oscar (Women Talking).
No fim das contas, ainda há muito o que ser feito em prol da equidade social, mas antes de qualquer coisa, é importante termos em mente aquilo que Rubem Alves uma vez escreveu: "sonhamos o voo, mas tememos a altura. Para voar é preciso ter coragem para enfrentar o terror do vazio". Não é sobre incapacidade intrínseca, como argumentavam os coetâneos de Virginia, mas sobre possuir condições dignas para realizar propósitos.