stsluciano 10/03/2015
Um dos melhores do ano
Se aceitam um conselho, não leiam sinopses. Nunca, jamais! Escolham o livro que querem ler por intuição, as chances de se decepcionar são grandes, é verdade, mas quando algo realmente bom surgir, as sensações ao final da leitura são indescritíveis. Foi isso que aconteceu comigo lendo o relato de Ava Lavender.
Pra começar, dizer que a família Roux é disfuncional é chover no molhado. O bisavô de Ava, Beauregard Roux, frenólogo francês, tinha o sonho de se mudar para Manhattan, mas, chegando aqui, desaparecera e deixara a mulher em um apartamento minúsculo cuidando dos quatro filhos, até que ela mesma começara a ficar transparente, terminando em um montículo de poeira azul. René, tio-avô de Ava, era reconhecido pela beleza extrema, mas fora morto pelo próprio amante. Sua irmã, Margaux, ao descobrir a traição do homem que amava, arrancara o próprio coração do peito; e Pierette, uma linda menina de cabelos louros acabara por se transformar em um canário. Pensando assim, Emilienne, avó de Ava, era a mais normal da família, mas, assim como seus irmãos, o amor lhe cobraria um preço.
O sobrenome da família muda de Roux para Lavender quando Emilienne conhece seu futuro marido, um padeiro que sofrera paralisia infantil e que por isso, ela acreditava, não seria propenso a abandoná-la ou fazê-la sofrer. Casada, já uma Lavender, partem de Manhattan a esmo, procurando um lugar para viver, até que terminam em uma casa ao final da Pinnacle Lane, em Seattle, onde seu marido abre uma padaria, e onde nasce sua única filha, Vivianne.
O livro é narrado por Ava, e o tom utilizado pela autora é o de uma menina de dezesseis anos que já passou por muita coisa – mas que mantém certo humor – e que vive em um ambiente onde o fantástico é um elemento sempre presente. A forma como ela conta a história de sua família é de um lirismo que torna difícil largar o livro sem que saibamos o que acontece a seguir. É bastante melancólico também, ainda mais quando vamos adivinhando – ou reconhecendo – entranhados no texto alguns sinais de que algo muito sério vai acontecer.
Reconheço que não entendi muito bem o distanciamento de Ava com relação à sua família no relato. Ela raramente – ou nunca – chama as pessoas de outra forma que não pelo nome, então lemos Vivianne, ao invés de mãe; e Emilienne, no lugar de avó. A família como um todo não é um grupo muito afetuoso, todos estão ocupados demais com suas dores – a mãe de Ava esperando por quinze anos um amor adolescente não correspondido que se mostrara bem canalha; e a avó convivendo com os espectros dos irmãos, que vivem nos cantos escuros da casa onde moram – e se ocuparam da melhor maneira que podem (levam ao pé da letra a ideia de que o trabalho ocupa a mente), o que não quer dizem que não nutram carinho um pelo outro. É diferente, como se bastasse saber que estão por perto, não sendo preciso demonstrações maiores.
Para completar os fatos estranhos da família Lavender, Vivianne tivera um casal de gêmeos, Henry, que não falara uma palavra sequer até a adolescência, e Ava, que nascera com asas.
Uma menina com asas. Todo o mundo que Ava conhece é o quintal de sua casa. Ela não se sente segura saindo pelas ruas, então é na amizade com Cardigan que ela toma conhecimento dos fatos mundanos, como a sensação de um beijo ou o que pensar dos garotos. Mas é claro que em algum momento isso não é mais o suficiente, e ela passa a se arriscar, a sair às escondidas, tentando sentir o que uma garota normal sentiria.
Coloque asas em um ser humano e logo um maníaco religioso irá enxergar um anjo – quando era pequeno havia uma tradição (sou católico) de as crianças usarem asas de algodão em uma certa celebração que não me lembro mais qual era. Nunca vou me esquecer quando um dos meus amigos, reconhecidamente arteiro, conseguiu atear fogo à dele, encostando sem querer em uma vela. Anos mais tarde aquilo ainda nos faria rir, principalmente quando se fazia alguma referência à anjos caídos. – É aqui que aparece Nathaniel. Ele, rapaz extremamente devoto que, dá margem à suspeitas, fora recusado por três seminários, vai tomar conta da tia, vizinha de Ava, que, acreditam está passando por um momento de distanciamento da fé.
O que mostra que não apenas a família Lavender é estranha, mas toda a Pinnacle Lane. A tal tia, Marigold Pie, seguia os preceitos da fé, e não se deixava tentar por nenhum dos apetites, inclusive o sexual. Com uma dieta a base de aveia e leite, pesava menos de quarenta quilos, e ia até à padaria de Emilienne apenas para olhar os doces e testar seu auto controle. Até que Emilienne, de surpresa, enfia uma colher de cobertura na boca da mulher. E tudo muda.
Essa é uma passagem um tanto surreal e uma das que mais me fez rir no livro. Acho que ela mostra bem a frequência na qual os Lavender estão sintonizados. É complicado falar sobre o livro além de dizer que ele é curto e muito bem conduzido, e te faz tanto sorrir quanto se preocupar com Ava, que, sim, é uma das personagens mais carismáticas com quem tive contato.
Vale a pena ler. Para mim, já desponta como um dos melhores do ano.
site: http://www.pontolivro.com/2015/02/as-estranhas-e-belas-magoas-de-ava.html