spoiler visualizarManuka 05/04/2016
ALERTA DE TEXTÃO! Resenha direcionada especificamente a quem já leu e não compreendeu e/ou achou o final (entre outras partes) sem sentido.
Achei "O Demonologista" diferente de tudo o que já li do gênero. O que pude notar na reação de várias pessoas aqui é que elas estavam esperando um grande clichê cheio de demônios caricatos e exorcismos. Não, o livro não se trata disso. É um thriller psicológico, não terror. Percebi também muitas críticas a "questões sem resposta" que na verdade foram, sim, respondidas no livro. Muitas vezes acabamos acostumadas com enredos óbvios e que, principalmente, terminem da forma que esperamos. Eu gosto de autores que balancem essa ideia, que virem tudo de cabeça para baixo e façam seus leitores raciocinarem e encontrarem os significados, interpretarem os sentidos, unirem informações e preencherem lacunas. Gosto de leituras que desafiem. Vamos, então, por partes:
1. PROFESSOR DAVID ULLMAN
É crucial mantermos em mente que estamos lidando com um personagem que sofre de depressão, que já é um demônio pessoal que ele carrega. Quem sofre com esta doença entenderá bem esta analogia. Durante toda a trama, as desventuras de Ullmann em busca de Tess são, por ele mesmo, conectadas à depressão, à melancolia crônica que sente. De modo que, em alguns momentos, fica difícil saber se o que o está atormentando é mesmo Belial ou se é alguma armadilha do estado melancólico de Ullman.
Ele amava Tess, sua filha, incondicionalmente, de forma que ela era tudo o que o importava e fazia feliz. Condição que o faz entrar na torturante jornada em busca de Tess por meio dos caminhos demoníacos de Belial, mesmo Ullman sendo um cético.
2. A COROA NEGRA
Em dado momento, Tess refere-se à depressão do pai como sendo uma "Coroa Negra", que Ullman, inclusive, enxerga na cabeça de seu pai no fim do livro, quando este está possuído por Belial. A tal coroa é representada na arte da capa do livro, envolvendo uma cruz.
3. A MALDIÇÃO HEREDITÁRIA
Tanto o pai de Ullman quanto Tess eram atormentados por Belial. Em certa parte Ullman conta que seu pai às vezes parava repentinamente o que estava fazendo e parecia vazio, com os olhos vidrados, como que escutando instruções de alguém que só ele ouvia. O mesmo acontecia com Tess. Logo no começo do livro temos uma passagem de seu diário, onde ela conta como sua mente era repentinamente transportada de onde quer que estivesse (em seu quarto brincando, por exemplo) para o "Outro Lado", o "Lado Errado", onde ela via a cena do tio ainda criança morto no rio. Era uma espécie de presságio: Belial mostrava a ela o passado de Ullman e, ao mesmo tempo, o futuro de ambos. O "Outro Lado" era uma floresta de árvores secas que ficava frente à cabana em que Ullman morava quando criança, do outro lado do rio que cortava o terreno, rio este que Tess define em seu diário como sendo a divisão entre os dois mundos. Foi lá que o pai de Ullman estava quando, possuído por Belial, afogou o próprio filho, foi lá que ele se suicidou logo após voltar a si e perceber o que fez. Aquela floresta seca era a representação do inferno na Terra. Só via uma floresta quem estivesse "Deste Lado" do rio, o nosso lado. Estando no lado da floresta, o lugar assumia sua forma original: o inferno, de onde o rio, na verdade, era visto como uma correnteza de lava, um rio em chamas. Outro momento em que era notável que Tess era procurada por Belial é quando, em Veneza com o pai, ela tenta fazer a volta de costas na coluna do Canal de San Marco, como uma brincadeira, um desafio lançado pelo pai. Ela consegue fazer a volta, porém, quando retorna às vistas do pai, ela está completamente absorta, vazia, como se não estivesse lá... e momentos depois ela volta a agir normalmente, assim como acontecia com o pai de David. Tess ouvia Belial frequentemente, ela sabia que seria levada.
4. O DOCUMENTO
O documento era uma espécie de teste que Belial colocava no caminho de quem ele escolhesse como seu potencial discípulo. O documento deveria ser entregue a ele, com o propósito de que a pessoa sofresse como mártir até que Belial decidisse levar a filmagem à humanidade tendo a pessoa que carrega o documento (Ullman, neste caso) como prova viva: um ser humano são provando à humanidade que o Diabo existe e vive entre nós, influenciando-as a ter fé nele, a idolatrá-lo, temê-lo. Este teste era um círculo vicioso de Belial, feito com diversas pessoas ao longo do tempo, como o Dr. Marco Ianno (ex-colega de Ullman, encontrado preso àquela cadeira em Veneza), por exemplo. TODOS terminaram mortos. O sofrimento humano era algo que entretinha Belial; por isso, entregando ou não o documento a ele, a pessoa acabaria sendo morta em algum momento.
5. GEORGE BARONE, O PERSEGUIDOR
Vi aqui algumas pessoas dizendo que não se esclarece quem é O Perseguidor, mas a resposta é dada claramente quando ele mesmo confirma a Ullman que é um assassino contratado pela Igreja Católica a fim de tomar o documento do professor.
6. TESS ESTÁ MESMO VIVA?
As pessoas mortas que se tornavam propriedade de Belial (a Mulher Magra, o garoto Toby, e a "Boneca de Pano", por exemplo) tinham um cheiro peculiar, descrito por Ullman como bolor de palha úmida e animais de chiqueiro sujo, "como algo vindo de debaixo da terra". O que, no fim do livro, prova que Tess realmente está morta, visto que Ullman identifica este odor ao sentar-se ao lado dela no trem.
7. O ENCONTRO COM BELIAL NA ESTAÇÃO DE TREM
No final, quando Ullman se recusa a entregar o documento a Belial e foge pela estação, Belial em sua fúria profere uma espécie de chamado, persuadindo Ullman a retornar e entregar-lhe o documento. Ao vislumbrar a verdadeira O'Brien em meio à multidão, Ullman a persegue, e quanto mais ele se aproxima dela, menos audível se torna o chamado de Belial, como se este se sentisse ameaçado. Como se Ullman estivesse alcançando um campo onde demônios não tinham poder: algo celestial. O'Brien. Lembrem-se de que pouco antes disso, enquanto tentava convencer Ullman a entregar-lhe o documento, Belial parou repentinamente, como se estivesse sendo interrompido por outro alguém: um possível aviso de que O'Brien estava por perto. É justamente por isso que ele não persegue Ullman quando este foge: Belial não pode se aproximar de O'Brien, não pode se aproximar do divino.
8. ELAINE O'BRIEN
Após perder O'Brien de vista, Ullman logo é surpreendido por ela reaparecendo e entregando-lhe um ticket para que ele embarque no próximo trem. Ela deixa claro que é real, beliscando o próprio rosto. Ele sente perfume exalando dela, ao invés do cheiro podre dos mortos tomados por Belial. Ela deixa claro que é um anjo divino quando Ullman tenta perguntá-la justamente sobre isso (a tradução deu uma vacilada aí. Relendo no idioma original ficou claro para mim que Ullman pergunta "Você é...?", mas traduziram "Você está...?", o que pode ter deixado esta questão pouco clara para algumas pessoas).
É possível que O'Brien tenha sido um anjo o livro inteiro (sobre isso o autor não deixa certeza, mas se o próprio Ullman terminou sem saber, por que nós saberíamos?), visto que ela sempre compreendia Ullman mesmo quando ele pouco falava de si e que, em vários momentos, ela falava de coisas que ninguém a havia revelado. Como quando ela diz a Ullman que Tess sabia de tudo, de muito mais do que ele imaginava, enquanto ele mesmo não fazia ideia de sobre o que ela estava falando. Ou ainda quando ela disse que o irmão de Ullman havia morrido afogado mesmo ele nunca tendo contado isso a ela. Quando Ullman pergunta como ela sabia, ela simplesmente não responde. O fato de Belial ter várias vezes tentado persuadir Ullman a deixar O'Brien para trás para seguir sua jornada também prova que ela tinha algo que Belial temia, algo que arruinaria seus objetivos para com Ullman.
9. O AUXÍLIO DO ANJO
O'Brien diz a Ullman que ele precisa embarcar especificamente naquele trem. Ela ordena que ele salte em Manitou, onde haverá um carro Lincoln branco aguardando por ele com as chaves escondidas debaixo de uma roda. Neste parágrafo a versão em português também não ajuda muito, pois ela cita "Intriga Internacional" (filme de Hitchcock) para ele, cujo nome original é "North by Northwest", que significa "de Norte a Noroeste", já que o personagem principal deste filme percorre de Norte (Nova Iorque) a Noroeste (Dakota do Sul) fugindo por ter sido confundido com outra pessoa. Norte a Noroeste é o mesmo percurso que Ullman faz ao longo do livro em busca de Tess. O filme "Intriga Internacional" a princípio se chamaria "O Homem no Nariz de Lincoln", por conta de uma cena em específico do filme. Coincidentemente ou não, era um Lincoln que estaria esperando por Ullman em Manitou. O'Brien disse que ele havia sido testado e que passara no teste. Lembram-se de Jó, da mitologia cristã (que também é citado no livro, quando O'Brien diz a Ullman que ele é um Jó do novo século)? Ele é testado por Satã com o consentimento de Deus. Satã tira tudo dele, desde as posses até a família, mas Jó se mantém fiel ao seu Deus mesmo assim, sendo recompensado mais tarde, recuperando tudo o que havia perdido. Muito provavelmente Ullman encontraria algum tipo de redenção se seguisse a instrução de O'Brien, mas Belial dá sua cartada final...
10. FIM: O RUMO INESPERADO DO TREM
Quando Ullman embarca no trem lotado, caminha até outro vagão, que curiosamente está praticamente vazio. Lá ele vê Tess sentada de costas para ele. Ele se senta ao lado dela e sente o odor desagradável, que pouco lhe incomoda neste momento. Ela pergunta se ele estará lá quando ela se virar para olhá-lo, ao passo que ele diz: "eu estou se você estiver". E então eles se veem, olho no olho, finalmente. Neste momento o rumo do trem muda, começa a descer atravessando a terra em direção ao "Outro Lado" do rio: ao inferno. Tess realmente estava morta e, no trem, Ullman também morre, sendo levado junto com ela.
Quando Ullman diz "estou aqui se você estiver", ele se rende a Belial, uma vez que este sempre dizia a Ullman que ele só reencontraria Tess se acreditasse, se tivesse fé naquele que os reuniria de novo (o Diabo). Ullman era um cético, nunca acreditou plenamente mesmo durante a jornada; era apenas um pai topando qualquer absurdo para ter sua filha de volta. Mas ali, naquele trem, desapontado e exausto, ele só precisava ter Tess de volta, não importava como. Então, finalmente sua fé aparece plenamente: "é ela, e eu acredito", e ele é levado para junto dela.
Sobre o documento, bem, uma vez que o proprietário está morto, o documento perde o propósito, já que Belial precisa de alguém em vida para provar à humanidade a veracidade do mesmo. No inferno aquele documento não tem valor algum. E é para o inferno que Ullman está indo com o documento nas mãos. Fica claro Ullman estar sendo levado para o inferno quando ele diz: "O trem acelera por dentro da terra, sob uma ilha de milhões. Logo sairemos do outro lado do rio", frase facilmente explicada pela primeira citação de "Paraíso Perdido" que aparece no livro: "Milhões de criaturas espirituais andam na Terra. Invisíveis, tanto quando estamos acordados, como quando dormimos". Ou seja, "ilha de milhões" = nossa terra, o lado dos vivos, o trem estava passando por dentro da terra, por debaixo de nós, direto para o "Outro Lado" do rio, o lado dos mortos e criaturas vis.
MINHAS CONSIDERAÇÕES FINAIS
Uma das coisas que mais me cativaram no livro foram os questionamentos sobre a dita grandeza e onisciência do Deus cristão, a visão de Belial sobre este, a visão do Diabo sobre sua queda. Vale informar aqui também que, não, você não precisa padecer lendo "Paraíso Perdido" para entender "O Demonologista", até porque todas as passagens necessárias são citadas na obra de Pyper. Por que não dei 5 estrelas? Porque concordo com algumas pessoas aqui quando questionam o fato de Ullman ter cruzado o país de carro em poucos dias. Isso realmente foi um bocado fantasioso e poderia ter sido melhor trabalhado, mais há tanto mais a explorar e se questionar neste livro que esse ponto, para mim, é só um detalhe. Tudo o que escrevi neste texto gigante está nas entrelinhas do livro, o que me lembrou um pouquinho as obras de Gaiman, que tem as entrelinhas como uma de suas marcas na escrita. Por isso costumo dizer que Gaiman é 8 ou 80: ou você ama, ou detesta. O mesmo me ocorreu com "O Demonologista". Anseio conhecer outras obras de Pyper.
Leiam "O Demonologista" devagar, saboreiem, interpretem, encontrem as pontas soltas e liguem-nas, montem o quebra-cabeça e vejam a magia acontecer.