Krishna.Nunes 20/02/2021Ok, mas... é tudo verdade?Este livro é um exemplo do que se costuma chamar de macro-história, ou seja, o estudo que tem como objetivo identificar tendências gerais e de longo prazo da história. Nisso a obra difere da maioria dos textos escolares, que dividem a história em pequenas seções: história do Egito antigo, da Grécia antiga, do Império Romano, da Mesopotâmia, do Brasil, etc., geralmente ignorando completamente a Ásia, a maior parte da África, as Américas pré-colombianas e nunca estabelecendo relação entre todos esses fragmentos.
O autor se baseia na premissa que a história da humanidade se move num grande fluxo, que foi em grande parte guiado por três revoluções: a revolução cognitiva, a revolução agrícola e a revolução científica.
A revolução cognitiva separou os sapiens das outras espécies humanas e dos animais por lhe permitir colaborar com estranhos. Entre animais e até os Homo sapiens primitivos, a incapacidade de colaborar com estranhos limita o tamanho das comunidades em algumas poucas dezenas de indivíduos. Uma evolução no cérebro dos nossos antepassados teria dado à nossa espécie a capacidade de criar mitos e narrativas ficcionais ao invés de usar a comunicação apenas para narrar fatos objetivos, possibilitando assim que as pessoas fossem capazes de colaborar em torno de ideias intersubjetivas (que ele define como ideias subjetivas compartilhadas por muitas pessoas, como o dinheiro ou a religião). Este é o ponto mais interessante de todo o livro, pois traz a ideia meio contraintuitiva de que nos organizamos ao redor de mitos, que são sustentados por outros mitos. Mito aqui não tem necessariamente o sentido de mentira, mas de algo que só existe na imaginação humana. Por exemplo, uma empresa não existe fisicamente, apenas o "mito" empresa existe separado das pessoas físicas porque as pessoas acreditam nele. E esse mito é sustentado pelo mito da burocracia que lhe dá respaldo. O qual, por sua vez, é sustentado pelo mito do sistema jurídico, que só existe devido ao mito do governo federal, e assim por diante.
A revolução agrícola permitiu que a população crescesse e passasse de nômade a fixa, com todos os seus desdobramentos, como o surgimento de cidades e reinos, e do comércio.
E a revolução científica, seguida da revolução industrial, deram ao capitalismo a possibilidade de sempre aumentar a produção, expandir indefinidamente a economia e encontrar novas fontes de energia.
Alguns aspectos causam incômodo durante a leitura. Não sendo um historiador e tendo apenas conhecimento mediano de história, o leitor muitas vezes não tem bases para avaliar se o que o autor afirma é verdade em diversos pontos. Geralmente não temos condições de diferenciar o que são fatos, o que são pontos pacíficos entre os historiadores e o que não passa de anedota ou opinião do autor. Ou seja, sem ter como verificar toda a bibliografia apresentada, o leitor fica sem saber se determinada afirmação é unanimidade entre os especialistas, se há controvérsia ou se aquele aspecto é defendido apenas por um pequeno grupo de dissidentes. Na maioria das vezes o autor apenas afirma sem esclarecer nada disso. É fato que diversas vezes ele diz que uma corrente defende isso enquanto outra acredita naquilo. Mas essas correntes são equivalentes? Têm o mesmo peso dentro da comunidade científica? Uma hipótese é largamente aceita enquanto outra é amplamente desacreditada? Só da leitura do livro é impossível inferir, é necessário ampliar a pesquisa.
Um exemplo visível dessa parcialidade incômoda é como o autor explica que a revolução agrária "prejudicou" a espécie humana. A saúde dos nossos antepassados piorou com a agricultura, pois ao passarem a viver em local fixo e com populações maiores, estavam mais propensos a infecções e epidemias, ao mesmo tempo que a dieta piorou na transição de caçadores-coletores para pastores-agricultores. Nada disso é falso, porém o autor se estende enormemente ressaltando esses pontos, mas não dá a mesma atenção às evoluções tecnológicas, comerciais e políticas decorrentes dessa mesma mudança. Ora, isso não contradiz o que ele afirma mais adiante, que a história tem uma direção e uma tendência à unificação? A revolução agrícola é um exemplo dessa direção e dessa tendência, mas o autor omite isso para enfatizar a narrativa desejada. E se por um lado ele passa uma seção inteira do livro defendendo que o imperialismo não é de todo ruim porque muitos aspectos de nossa cultura atual são herdados de impérios, ele não faz a mesma concessão para o que ele julga mau, como a revolução agrícola, que também teve seus desdobramentos bons. Ela é decretada como prejudicial e ponto final.
Enquanto em boa parte do livro o texto é excelente, em algumas parece que o autor quer testar a paciência do leitor. Um exemplo disso é quando ele afirma que comunismo, capitalismo, liberalismo e nazismo são religiões. Para tanto ele inventa uma definição particular de religião e passa longas páginas tecendo malabarismos mentais para tentar encaixar essas ideologias em sua definição. Aqui ele ignora os aspectos das ideologias que não seriam favoráveis à sua tese e se prolonga de maneira tediosa naqueles que supostamente "provam" o seu ponto. Poucas páginas depois, ele chama o cristianismo, o islamismo, o budismo e o confucionismo de "tradições de conhecimento", aos quais não demora para adicionar a ciência. Ora, então comunismo/nazismo estão no balaio das religiões sob uma definição bem peculiar, mas ciência/cristianismo estão no grupo das "tradições de conhecimento", já sob uma definição de religião completamente diferente.
Toda a parte 3 do livro é insuportável, um desfile de falácias e contradições que se estende por 80 páginas.
Mais adiante, ao passo que o imperialismo é exaltado, o comunismo é apresentado de maneira desonesta e descaradamente incorreta. Por outro lado, o capitalismo tem um capítulo próprio, que por sinal é muito detalhado e didático, apesar de calcado na fantasia de que a doutrina de Adam Smith é revolucionária, completa e atual, ignorando as mazelas que concentração de riquezas provoca em todo o mundo.
Felizmente a parte 4 volta a ser interessante e a discussão sobre felicidade no final é cativante.
Enfim, uma obra intrigante para ser lida com senso crítico. Se tivesse que resumi-la em uma frase, seria: "um livro para dizer que a humanidade evoluiu para ser competitiva e capitalista." Talvez não seja a melhor porta de entrada à macro-história, pois é fortemente parcial e levará o leitor desavisado a desenvolver preconceitos desnecessários.