Gildo Henrique 15/05/2015
SOBRE MAQUETES E ONDAS ELETROMAGNÉTICAS
Enveredar-se pelo universo das ficções premiadas com o Pulitzer de Literatura parece ser o caminho de todos os que buscam descobrir paradigmas que orientam tais escolhas, seja pela cor com que pintam suas histórias e personagens, seja pela técnica adotada por seus autores em capturas de interesses que fazem dedos virar páginas e páginas (o que os norte-americanos chamam de "page turner"), na sofreguidão de viagens literárias bem construídas. Lançado recentemente pela Intrínseca, o novo fenômeno intitula-se "Toda luz que não podemos ver" (All the Light We Cannot See), do estadunidense Anthony Doerr. Este seu segundo romance, finalista dos maiores prêmios de 2014, dentre eles o National Book Awards - que o levou a ser vencedor em 2015 do Pulitzer de Literatura categoria ficção -, traz como pano de fundo a Segunda Guerra Mundial, tema por demais explorado e que poderia se tornar enfadonho. Poderia: os matizes com que descreve seus bastidores leva o leitor a ver além do óbvio, além do que é dito, a refletir sobre o sentido da vida, sobretudo sobre a bondade inata do ser humano.
Doerr optou por separar a história em 178 capítulos divididos em 13 partes, datadas sem ordem cronológica, à exceção das quatro últimas, que nos fazem lembrar "O jogo da amarelinha" (Rayuela, 1963), de Júlio Cortazar: tal artifício não só tem a finalidade de aguçar a curiosidade do leitor, mas, também, a de revelar situações e destinos de personagens que, numa leitura sequencial, demandaria digressões que desviariam o foco narrativo progressivo, totalmente alternado entre seus dois personagens principais - apenas alterado por cartas ou movimentos do vilão - de uma história que abrange 80 anos, de 1934 a 2014. Aos poucos, infâncias retratadas com luzes aconchegantes em ambientes fraternos e hospitaleiros vão se convertendo em horror, atrocidades, medos e angústia de sobreviventes em fuga de bombardeios, enquanto outras caminham inexoravelmente para as loucas fantasias do Führer, sem nem mesmo questionar o porquê.
Marie-Laure vive em Paris, perto do Museu de História Natural, onde seu pai é o chaveiro responsável por cuidar de milhares de fechaduras. Quando a menina fica cega, aos seis anos, o pai constrói uma maquete em miniatura do bairro onde moram para que ela seja capaz de memorizar os caminhos. E todos os anos, no seu aniversário lhe presenteia com enormes romances em Braille. Maria-Laure está com doze anos quando Paris é ocupada pelos nazistas, e pai e filha se refugiam na cidade de Saint-Malo na costa oeste da França (Bretanha), onde o tio-avô de Marie-Laure vive em uma enorme casa à beira-mar. Eles levam consigo o que talvez seja o mais valioso e perigoso tesouro do museu. Enquanto isso, numa região de minas na Alemanha, o órfão Werner cresce com sua irmã mais nova, encantado pelo rádio que certo dia encontram em uma pilha de lixo. Com a prática, Werner acaba se tornando especialista em montar e consertar esses aparelhos cruciais à época, talento que lhe vale uma vaga na Juventude Hitlerista e, logo depois, uma missão especial: descobrir a fonte das transmissões pelo rádio responsáveis pela chegada de Aliados na Normandia. Cada vez mais consciente dos custos humanos de seu trabalho, o rapaz é enviado então para Saint-Malo, onde seu caminho cruza com o de Marie-Laure.
Essas duas linhas narrativas - uma menina órfã que carrega um diamante valiosíssimo e um menino que ingressa para o exército alemão - parecem querer demonstrar sobre as coincidências da vida ou sobre "destinos cruzados". E, para isso, o autor habilmente, como muito bem fazia a escritora inglesa Agatha Christie, projetou vidas pregressas de personagens que colaboram para esse encontro. Como um menino alemão sabe francês? No orfanato, Frau Elena falava, além de um tal programa de rádio... Como uma menina cega consegue se movimentar pelas cidades de Paris e Saint-Malo? O pai constrói maquetes "perfeitas" desses lugares, a ponto de reproduzir ralos e bueiros (?). Sobre o diamante que transporta consigo - O Mar de Chamas -, trata-se de uma jóia que possivelmente tenha vindo do Japão e pertencido a um xogum do século XI, cuja lenda diz que "o portador da pedra viveria para sempre, mas, enquanto a mantivesse, infortúnios cairiam sobre todos aqueles que ele amava como uma tempestade sem fim". Se a busca de tal tesouro por um especialista do exército alemão - acometido de uma doença terminal -, leva a somar elementos de suspense à trama, tal fato não se revela determinante para o leitor, tamanha é a articulação das histórias paralelas, o que nos leva a sonhar com um desfecho romântico imediato.
Algumas sequências de Marie-Laure em Saint-Malo durante a guerra nos remetem ao filme "Terror Cego" (1971), de Richard Fleischer, quando a personagem de Mia Farrow, também cega, se vê às voltas com um assassino. Aliás, o guarda-roupa da casa de seu tio-avô, com sua passagem secreta, que é utilizado durante boa parte da história, também nos remete às "Crônicas de Nárnia", do escritor inglês Clive Staples Lewis (1898-1963), não como um limite entre dois mundos, mas, pelo fato de ser muito mais do que um esconderijo: um local onde a personagem se sente em liberdade durante os bombardeiros, e de onde consegue se comunicar por um velho transmissor de rádio, pedir socorro e ainda ler para possíveis ouvintes capítulos de "Vinte Mil Léguas Submarinas", de Júlio Verne. Eis o fio condutor que une os dois jovens: as aventuras do Capitão Nemo e do Professor Aronnax funcionam como um intertexto no elo entre as situações vivenciadas pelos dois jovens. E o rádio é exatamente o motivo pelo qual o menino Werber entrou na guerra, por ter se tornado um perito em localização de ondas eletromagnéticas advindas dos Aliados.
Os treinamentos sem escrúpulos a que os jovens são submetidos na juventude nazista, a crueldade de seus instrutores, desde os exames rigorosos porque passam - que vão desde o nível de tons de azul de seus olhos à retidão de seus narizes -, são carregados de cores fortes e o autor não nos poupa de retratá-las com a crueza de detalhes. E nessa interação juvenil, personagens coadjuvantes vão ficando pelo caminho: deprimidos, mortos, tetraplégicos ou alienados mentais. Personagens que teriam vida longa, se Doerr resolvesse continuar com a arquitetura que planejou, tão reais se nos apresentam no decorrer da história. E, quando mais tarde Werber começa a questionar sobre seu papel na carnificina que passa a presenciar, precisamente durante a dominação da Rússia ("É certo fazer algo porque todos estão fazendo?", perguntava a irmã Jutta), caminhando no transporte de seu equipamento-rádio pelas extensas plantações de girassóis, torna-se impossível não nos lembrarmos do filme de Vitorio De Sica, quando a personagem de Sophia Loren caminha pelos extensos campos dos "Girassóis da Rússia", à procura de seu homem, possivelmente morto naquela mesma guerra.
Esse brilhante romance, corretamente intitulado "Toda luz que não podemos ver", é daqueles que não conseguimos parar de ler, que nos leva a refletir sobre a delicadeza do existir, da ânsia pela busca da felicidade em situações nem sempre de acordo com o que esperamos, mas, sobretudo, é um romance que relata a sobrevivência de seres humanos e suas possibilidades de mudar o mundo. E Anthony Doerr o escreveu com maestria: uma aula sobre como cativar o leitor para a realização de uma viagem, durante a qual retardamos para que não chegue ao fim e que, depois de sua última palavra, ficamos em silêncio, refletindo sobre nós mesmos, nossos sonhos, nossas realizações; sobre os obstáculos que saltamos; sobre entes queridos que deixamos pra trás e, sobretudo, sobre as luzes que atenuam ou realçam nosso caminhar pelos labirintos da vida. Em caso de saudade dos personagens, resta-nos usar o street view do Google Maps, selecionarmos a cidade fortificada de Saint-Malo e localizarmos a Rua Vauborel, nº 4. O que Marie-Laure fazia com os dedos pela maquete em miniatura, podemos imitar em outra dimensão. E a partir daí, seguirmos até uma estreita passagem para outro esconderijo repleto de caramujos à beira-mar da Bretanha. Quem sabe nos reconhecemos ali com uma chave na mão...
Gildo Henrique é aluno do Curso de Letras/Literaturas de Língua Portuguesa do Instituto Federal Fluminense - Campos dos Goytacazes/RJ.
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