spoiler visualizarDany 11/01/2022
A invenção da imortalidade
SINOPSE: Um homem se refugia em uma ilha e, nela, encontra apenas uma vasta vegetação e três construções, aparentemente, inabitadas. Passados cerca de cem dias, o homem avista outras pessoas lá, e com um misto de receio e curiosidade, passa a observá-los e tentar entender esse e outros mistérios; os da ilha e os do seu íntimo.
SOBRE O AUTOR E O CONTEXTO HISTÓRICO: A Invenção de Morel foi publicado pela primeira vez em 1940, escrito pelas mãos do argentino Adolfo Bioy Casares, que viria a se tornar um grande expoente da Literatura Latino-Americana e do Realismo Mágico, ao lado, por exemplo, de sua esposa, a pintora e escritora Silvina Ocampo, e do amigo e também escritor Jorge Luís Borges, que chegou, no próprio prefácio dessa edição, a qualifica-la como “perfeita”. Aliás, juntos, os três lançaram a famosa Antologia da Literatura Fantástica, um verdadeiro clássico que reúne diversas obras do gênero.
Em a Invenção de Morel, Casares, que chegou a ganhar o Prêmio Cervantes, em 1990, cria uma mistura perfeita de aventura com ficção científica, algo como uma Ilha do Tesouro encontra A Ilha do Dr. Moreau (aliás, não seria “Morel” uma referência ao clássico personagem de H.G. Wells?), mas recheando a história com questionamentos bastante humanos, como o medo da morte e, em uma espécie de contraponto a falta de sentido em uma imortalidade vazia de sensações “reais”, os efeitos da solidão e a busca por relacionamentos que deem sentido à existência, resultando em uma espécie de romance científico-filosófico.
RESENHA: Acontece que nosso personagem principal, de quem não sabemos nem mesmo o nome, acaba nessa solitária ilha depois de ter ficado sabendo dela por um certo comerciante italiano, quando em meio a uma tentativa de fuga do regime político de Valentín Gomez, o que nos posiciona, portanto, no México do século XIX. Apesar de ter ouvido falar que o local parece inabitado, se não por outros motivos, por um tipo de doença que mata de fora para dentro, apodrecendo membros enquanto o corpo ainda vive por cerca de mais uma semana, a troca de uma morte iminente por outra, possivelmente, adiável, parece suficiente para o levar até lá.
Depois de já ter passado cerca de cem dias na ilha e já reconhecer sua vegetação e suas únicas três construções: uma capela, uma piscina e um museu que mais parece uma espécie de hotel, ele é acordado por vozes e vultos vindos do alto de um morro próximo a elas. A visão desse grupo de pessoas causa espanto no homem, que já aprendeu, pelo seu passado brevemente revisitado ao longo da obra, a ver em desconhecidos, possíveis delatores que o coloquem em perigo. Apesar disso, o fascínio de tentar entender de onde essas pessoas surgiram e como isso é possível, faz com que ele se aproxime cada vez mais delas.
A partir daí o personagem tece uma série de possíveis teorias, muito provavelmente as mesmas que o leitor produz ao longo da narrativa; será que ele está morto? Será que está delirando pelo calor e má alimentação? Seria uma realidade alternativa? Ao se aproximar mais desses indivíduos, não só pela curiosidade, mas pela necessidade crescente de abandonar a vida cada vez mais miserável em que se encontra, completamente invisível, ele avista Faustine, uma das mulheres do grupo por quem acaba se apaixonando. É a partir daí, do momento em que ele percebe que estar vivo significa mais do que apenas sobreviver, que ele volta a empreender esforços para mais do que isso, perdendo o medo aos poucos e se aproximando cada vez mais do grupo de estranhos, para desvendar enfim, todos os mistérios em volta deles.
É a partir do momento doloroso em que ele compreende que, apesar de todos seus esforços, ele é, de fato, invisível para Faustine e os demais “intrusos” da ilha, que ele se vê disposto a encarar seu medo de uma possível ameaça, deixando um pouco de lado o peso dessa personalidade mais paranoica, para investigar e entender, de fato, no que ele está metido. Daqui pra frente, terão alguns SPOILERS, então se você ainda pretende ler a obra, pule para os parágrafos finais, para as considerações finais sobre a história e a leitura.
Ele começa a perceber, por exemplo, que as cenas e as falas das pessoas se repetem de tempos em tempos, reconhece também, que enquanto algumas plantas parecem perenes, outras, murcham e morrem. Empreendendo buscas para entender melhor essa “sua” realidade, ele passa a vasculhar os prédios e encontra, então, algumas máquinas. Durante a noite, se colocando bem próximo ao grupo de pessoas que parecem estar celebrando algo, ele ouve o homem barbudo, a quem já reconhece pelos diálogos como Morel, contando o motivo de estarem todos naquela ilha: em uma busca desesperada para preservar o que acredita ser o melhor da vida, os bons momentos vividos entre amigos e próximo da mulher com quem parece desejar um relacionamento mais íntimo, Morel envolve todos eles em um projeto que lhes promete uma vida eterna, que fica, porém, relegada a repetição eterna dos seus últimos momentos juntos.
O inventor explica todo seu pensamento e seu processo de criação - que alude um pouco as antigas crendices populares de artefatos como espelhos e máquinas fotográficas, que “roubavam”, para além da imagem, a própria alma daqueles que captavam -, revelando a todos que seus dias de lazer vem sendo filmados, dia após dia, para verdadeiro espanto de todos. O fugitivo, que ouve tudo de um esconderijo improvisado, passa agora a se ver como o intruso, preso nessa espécie de loop e sem a esperança de jamais ser percebido pela sua amada, pois a invenção de Morel, é, na realidade, a invenção da imortalidade, mas, ironicamente, a custo da própria morte daqueles que são captados pelas máquinas do experimento. Para o protagonista, contudo, a pior parte é finalmente dar-se conta de que a dor de ser ignorado por seu amor, como supunha estar acontecendo, só não é maior do que a dor de, na verdade, ser esse, um amor completamente inacessível, uma vez que sua Faustine não passa de uma mera reprodução de uma realidade que já foi.
Diante dessa descoberta, e finalmente dando-se conta de que sempre esteve sozinho na ilha e de que, todos aqueles com quem dividiu seus últimos dias já estão mortos, nosso protagonista toma a decisão final de se juntar a eles, filmando a si mesmo como se fosse mais um personagem dentro daquela história, e torcendo para ali permanecer para a posteridade, enquanto aguarda sua derradeira morte.
NO SPOILERS: Sobra a leitura, pra mim em particular, preciso dizer que ela se fez de forma um pouco arrastada pra mim, pelo menos até o primeiro terço. Eu tinha medo também de que todas as hipóteses levantadas fossem levar até um final muito aberto ou até mesmo, nonsense; ainda mais porque eu já sabia que essa história serviu de base, por exemplo, para a série de TV Lost, que, bem, não deixou muita gente contente com seu final, né. Mas, a partir do momento que o personagem se despe dos receios dele e começa a ir mais a fundo, tentando entender de fato o que está acontecendo, eu senti que o desenrolar foi mais dinâmico e eu, literalmente, não larguei mais o livro até chegar no final que, pra mim, foi sim, bastante satisfatório.
Eu acho que foi um final bem digno sabe, pra dizer o mínimo, porque não deixou pontas soltas (inclusive, nas páginas finais, o próprio personagem se propõe a explicar possíveis coisas que tenham ficado em aberto, e bem nesses termos mesmo, porque a história é narrada em forma de diário, então o narrador tem essa liberdade de ser bem direto mesmo, o que facilita pra quem está tentando digerir bem toda a história), explicou de forma bastante realista, claro, dentro da proposta desse universo fantástico, afinal, trata-se de um Realismo Mágico, tudo o que o personagem e nós, enquanto espectadores, vivenciamos ali, e de cara, ainda nos presenteou com um desfecho que sim, podemos entender como triste ou trágico, mas que também foi muito bonito e reflexivo, e é por isso que eu acho que essa história, assim, tão curtinha, consegue ser tão profunda e ficar com o leitor por tanto tempo, fazendo ela se tornar um dos cânones dentro do gênero.
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