Ramon.Amorim 07/11/2022
"Já se passaram três anos? Quantas vezes ainda teria três anos para viver?"
André e Nicole, casal de professores parisienses protagonista dessa novela de Simone de Beauvoir (1908-1986), retornam à União Soviética em 1966, três anos após a primeira visita deles, para um período de descanso ao lado da filha de André, Macha, que mora no país. Nesse retorno ainda conservam o frescor da primeira visita e têm a expectativa de reencontrá-lo. A estada, no entanto, é decepcionante por vários motivos, entre os quais o excesso de comedimento da URSS em relação aos estrangeiros, as frustrações interiores do casal e a incapacidade de André e Nicole de reativarem o entusiasmo agora num segundo encontro com o país: as coisas não têm mais o mesmo sabor de novidade.
Alguns podem não gostar do estilo narrativo da autora que encanta mais pelo frenesi psicológico dos personagens do que por cenas épicas. O casal visita Moscou, São Petersburgo (Leningrado, então), Vladimir, mas as cidades desbotam diante das reflexões dos personagens, foco principal da novela. Mas isso está longe de minimizar seu impacto, pois somos tragados pela gigantesca consciência de si, do tempo e da finitude de André e Nicole. Simone de Beauvoir foi uma filósofa existencialista e isso, claro, se estende abundantemente para sua literatura, evocando uma qualidade muito humana de sua escrita, com percepções interiores muito vivazes.
A novela trabalha com temas como a velhice e é bastante pungente o momento em que André chega à reflexão de que "acabou, a vida não me reserva mais nenhuma surpresa", tanto quanto o momento em que Nicole relembra o dia em que se interessou por um amigo de André, mas o olhar desse amigo foi interpretado por ela como tão assexuado que ela nunca mais se recuperou daquele olhar, mudando totalmente o modo de enxergar a própria sexualidade. A pergunta que ela faz: "Já se passaram três anos? Quantas vezes ainda teria três anos para viver?" é outra maneira cortante de lamentar a passagem do tempo.
São esses momentos que, ao ilustrar a comovente consciência de si próprios e da vida que levaram, fazem de Mal-entendido em Moscou uma novela que funciona como um repertório para alargar, em conjunto com outros livros - claro -, a nossa consciência individual e daquilo que importa de uma maneira mais abrangente. Essa autoconsciência que a literatura oferece é uma das mais gratificantes respostas ao hábito literário, nos posicionando de uma maneira menos imediata diante das muitas circunstâncias da vida.