Pedro 26/10/2023O amor também é um demônioNão sou tão conhecedor da obra de Márquez, mas essa foi uma leitura que, no geral, me agradou muito. Sempre acho fascinante como toda a América Latina, mesmo com suas diferenças, compartilham tanta cultura e mazelas. O texto é irônico e não tem pudores de expor a sujeira por trás das máscaras de cada personagem.
Sierva Maria, por sinal, é uma personagem fascinante. Frequentemente o centro dos eventos mas quase nunca aquela que conta sua própria história, ela tem aquela duplicidade tão cara ao realismo fantástico. Possuída ou apenas louca? Doente ou saudável? Inocente ou maliciosa? Pouco importa, ela é ambos e nenhum. A única certeza é de que ela foi uma vítima de todos os que a rodearam, todos que tinham dever de cuidar de uma menina tão jovem. Uma família cheia de descasos, freiras intolerantes, padres perversos... o que faltou a ela foi um conselho tutelar.
Mas tem um detalhe que tanto me intrigou quanto me incomodou: o relacionamento de Sierva Maria com Cayetano. Sierva Maria não era sequer uma adolescente, mas sim uma criança, enquanto Cayetano era um adulto de 30 anos. Não me importa se isso talvez fosse aceitável na época, não só porque a própria história conta que de fato não era, mas também por isso ocupar um espaço central demais em um romance que nunca se apresentou como histórico. Gostaria de não acreditar que Márquez estivesse romantizando um abuso. Contudo, há uma interpretação alternativa. Como o próprio título diz, o amor é um demônio entre vários. Talvez o único demônio que possuiu a alma de Sierva Maria. Ou, pelo contrário, um demônio que possuiu todos os personagens e os fez realizar todas essas violências: amor pela religião, pelo dinheiro, pelo sexo, pela vaidade, pelo poder... Assim, o "amor" de Cayetano por Sierva Maria seria só mais uma manifestação desse demônio.
No fim, ainda prefiro uma abordagem menos dúbia. Acabo o romance com um gosto ruim. Mas felizmente, gostei bastante de todo o restante.