Lara 24/03/2023
Gabo e Cartagena, já é tudo que eu preciso para dizer que esse livro é bom, mas bom de um tanto, que nem sei! Uma Colômbia que ainda não era Colômbia (me recuso a dizer em seus tempos áureos, em contraponto com "nos tempos do cólera" porque sendo colônia... Já sabem o que eu quero dizer, mas enfim), mas já muito envolta em misticismos e medos religiosos, com uma igreja católica voraz "convivendo" com tantas outras cosmologias, tem-se o cenário perfeito para que Márquez possa dar vazão a uma história fantástica baseada em uma história que ouvia de seus avós ainda criança, sobre uma marquesinha de cabelos longos. Sierva, a marquesinha dessa história, foi renegada pelos pais, criada juntos aos escravos da casa, se comunicava em várias línguas africanas, mas se calava em espanhol. A menina cresceu envolta em um outro modo de viver, que não se encaixava no "papel de nobreza" esperado da filha do Marquez. Um dia a menina é mordida por um cachorro, o que naquele tempo, em meio a um surto de raiva, inspirava preocupação. Em um arrombo de paternidade, o pai de Sierva a submete a todos (que na época não eram muitos) e os mais diversos tratamentos para curá-la da suposta raiva que havia contraído, obviamente nada surge efeito aos olhos dele dado o comprotamento em crescente agressividade da filha (nunca lhe ocorreu que talvez fosse uma resposta direta aos maus tratos que os tratamentos representavam). Uma menina de temperamento livre, não responde bem a uma mudança brusca de vida, antes livre e bem atendida juntos a aqueles que considerava seus, passa a viver trancada na casa até que sua escalada de "raiva" faz com que o pai a leve para um convento, para exorcizá-la, porque obviamente (contém ironia) um demônio era a única explicação. Várias coisas vão acontecendo enquanto Sierva é trancafiada no convento, com a prosa de Márquez, inconfundível e irreplicável, somos transportados para um mundo em que os demônios são tão reais quanto o sol e a chuva. A história de amor que Sierva vive, com um amante improvável, devo admitir que não me cai tanto, uma coisa de ela ser criança (mesmo sabendo que a métrica de idade daquela época era completamente diferente), não sei explicar, mas fato é que a menina só sairá do convento já como um esqueleto de cabelos longos, encontrado 200 anos depois sob as ruínas do antigo convento. Esse livro é sinceramente uma obra prima. Entrar nesse mundo dominado pelo obscurantismo me faz refletir tanto sobre os últimos anos, vivemos por um bom tempo fechados para nós protegermos de um mal que era sim real, mas ver que muitos optaram por se trancafiar contra um demônio que não existe (alô ameaça comunista) só me mostra que a história nunca se repete ao pé da letra, mas é composta de ciclos.