Vanessa Vieira 10/06/2016
Beije-me Onde o Sol Não Alcança - Mary del Priore
O livro Beije-me Onde o Sol Não Alcança, primeiro romance da historiadora Mary del Priore, se passa na segunda metade do século XIX e percorre Paris, São Petersburgo e Rio de Janeiro com uma riqueza de detalhes surpreendente. Apesar do marketing ter frisado bem o triângulo amoroso da trama, o livro, felizmente, vai além e nos traz o retrato de um Brasil que sofre a derrocada do apogeu do café e vivencia os primeiros movimentos de libertação escravagista. O contexto histórico do enredo é riquíssimo e isso se deve à pesquisa minuciosa feita pela autora e também por se tratar de uma história um tanto quanto biográfica.
Conhecemos a história de três personagens reais, dos quais consta, inclusive, as datas de falecimento nas notas finais do livro. Maurice Haritoff é um conde russo que perdeu o prestígio de seu sobrenome com a queda da dinastia Romanov e parte rumo ao Brasil com o propósito de se casar e refazer o seu nome. A escolhida do conde é Nicota Breves, a herdeira de um poderoso barão do café. Simples, tímida e ingênua, ela não é uma moça de grandes atrativos e até mesmo já não se encontra em idade casadoura. Os anos passam e Nicota não consegue engravidar, nem mesmo utilizando de simpatias e outras artimanhas vindas de Maria Gata, uma escrava que está com a moça desde criança.
Ela ama o marido com cada fibra de seu ser e o seu sentimento é palpável no decorrer da leitura, principalmente por Mary del Priore ter retratado fielmente suas cartas de amor ao esposo, que pertencem, hoje, a coleção da sra. Ieda Borges. No entanto, Maurice não compartilha da mesma devoção desenfreada de sua esposa e tanto em suas viagens para o exterior quanto pelas suas andanças na fazenda Bela Aliança, se envolve em relacionamentos extraconjugais, sempre com moças bem jovens. Porém, é com Regina Angelorum - uma jovem escrava alforriada que foi criada como filha por Nicota - que ele se envolve e se vê completamente apaixonado.
Beije-me Onde o Sol Não Alcança é o retrato do Brasil em meio a uma época em que o império do café sofre o seu declínio, principalmente por conta da abolição da escravatura. É também uma aquarela dos costumes de um período envolto por dramas, infidelidades, ambição, poder, religiosidade e opressão feminina. O enredo de Mary del Priore vai além do triângulo amoroso que nos foi vendido e nos descortina a história de nosso país com maestria e exuberância. Narrado em primeira pessoa por quatro personagens distintos - Maurice, Nicota, Regina e um jornalista mulato que nutre uma calorosa afeição pela sinhá moça - o livro mostrou um cunho histórico soberbo e isso, por si só, já conseguiu ganhar a minha afeição.
"Essa foi a história de uma esposa infeliz, de um marido infiel e de sua amante. De infidelidades feitas de feridas minúsculas, de humilhações, de remorsos e solidão. Do uso e abuso de máscaras. Infidelidades feitas não só de deslealdade amorosa, mas de mentiras. Mentiras sobre quem se é. Mentiras sobre de quem se gosta. As dele, as dela. Essa é uma história triste, sobre a qual todos acham que sabem muito. E nada ou quase nada conhecem."
Maurice, desde o início da história, se mostrou uma pessoa ambiciosa e cega pelo poder. Ele se casa com Nicota sonhando com o título de barão do café e pouco se importa com os sentimentos da moça. Sua infidelidade acontece com naturalidade - afinal, era um costume da época as "diversões extraconjugais"do esposo - e ele nem mesmo hesita em machucar e humilhar sua esposa, se envolvendo com uma jovem escrava que foi criada como filha por ela. Ao meu ver, foi um personagem egoísta e desprezível e que infelizmente não foge do estereótipo dos barões e senhores de engenho da época.
Nicota, mesmo sendo entregue para casar com um homem que nunca viu na vida, acaba se apaixonando. Desde jovem, a moça sofre graves complicações de saúde e em decorrência disto, não consegue engravidar. Ela utiliza tantos métodos medicinais quanto espíritas para auxiliá-la na questão, mas todos eles se mostram em vão. Seu amor por Maurice é abnegado e pungente e por termos acesso às suas cartas para o amado, é impossível não compartilhar com a personagem toda a angústia e desprezo sofridos. Mais do que uma traição carnal, Maurice seduziu alguém a quem ela estimava e amava como filha e isso foi uma punhalada severa em seu coração.
Regina aparece muito pouco no enredo, apesar de ser o pivô do triângulo amoroso. Tal como muitos escravos da época, mesmo na alforria, ela permaneceu na fazenda Bela Aliança por não ter outro lugar ou ao menos padrão de vida para seguir. Sua ingratidão com a sinhá moça que a acolheu como mãe foi muito cruel e, mesmo sabendo que Maurice é tão e até mesmo mais culpado do que ela, acredito que ela poderia ter se desviado das investidas do patrão ao invés de sucumbir na primeira chance, ansiando por um estilo de vida caprichoso e melhor.
Em síntese, Beije-me Onde o Sol Não Alcança se mostrou um livro de teor histórico profundo e um retrato primoroso do Brasil da segunda metade do século XIX. O romance não conseguiu chamar tanto a minha atenção quanto eu gostaria, mas felizmente me deliciei com uma história bem construída, marcada por um forte contexto histórico do período da monarquia, das fazendas de café e da abolição da escravatura. O fato da autora ter intercalado as cartas trocadas entre seus personagens, bem como os folhetins e reportagens datadas deste período, tornaram o enredo ainda mais vivo e real. A capa é simples e nos traz a gravura de uma sinhá moça lendo uma carta à beira-mar e a diagramação está ótima, com fonte em bom tamanho e revisão de qualidade. Recomendo ☺
site: http://www.newsnessa.com/2016/06/resenha-beije-me-onde-o-sol-nao-alcanca.html