Sintaxe 16/04/2024
A razão enlouquecida
Immanuel Kant outrora impôs limites à razão. Mostrou com a força do rigor germânico os percalços, as travessas, a extensão e os limites da razão diante das questões nas quais ela mesma se impunha a si. Surge, então, a era da crítica: o talhe da possibilidade teórico-epistemológica do homem, a desvalorização de uma certeza dogmática na metafísica (Deus, a imortalidade da alma e a finitude ou infinitude do universo), o exílio do númeno e a abertura do fenômeno. Trafegar para além desses limites é o mesmo que enlouquecer - não: é enlouquecer tout court. Isaac Asimov, leitor dos idealistas alemães, soube muito bem disso, e não é à toa que seu melhor conto traduz em metafórica literária uma filosofia tão rica, sublime, terrível, angustiante. Estamos às voltas com a noite eterna do incomensurável, o despertar do desconhecido numênico, o fim da razão, a abertura à fé. Sem mais delongas, tratemos disto, desta potente mistura alquímica entre filosofia e "ficção" (como se tudo desde o chinês de Königsberg já não fosse apenas isto, quer dizer, ficção!).
Antes, uma espécie de aviso: os que me acompanham neste perfil já devem estar atinados a isto, mas reitero aqui e acolá minha preferência por resenhas e textos a respeito de obras menos conhecidas ou largamente esquecidas, o oposto de um clássico celebrado tal como o presente conto a ser analisado. Minha conta, aliás, possui este fim, a saber, falar sobre livros à margem para que meu repertório cultural se expanda para além das grandes obras às quais estou atado e sigo atado com muito prazer. Entretanto, na medida que lia O Cair da Noite, gradualmente me percebia entusiasmado com as questões colocadas, feliz em perceber tamanho cuidado no tocante ao conteúdo filosófico, especialmente oriundo de um autor apreciado por mim. Por isso me decidi: faria, em uma atitude excepcional, uma análise deste conto sob uma lente kantiana, procurando pontos de contato e estruturas de tradução metonímica, metafórica, imagética. Isto implica uma perda, não há dúvidas, sobretudo quando se faz o que faço, tomando a posição terceira e traduzindo a tradução, colocando em outra ordem metafórica as metáforas a diferir o original. Tanto melhor! De rastros em rastros se vai constuindo a diferança.
A terrível ameaça flagrante na história não é algo tangível, imediato, corriqueiro ou da ordem comum das coisas. Diferente de outros textos de ficção científica em que, digamos, uma guerra interplanetária assola os protagonistas, uma invasão alienígena, um exército de máquinas, que seja; aqui, o problema é diverso, da ordem do diverso, do caos do di-(in)verso: como lidar com algo para o qual não há conceito possível? Para uma civilização cuja vida inteira se passou sob os raios constantes de seis sóis a orbitarem-na, a escuridão, a noite, é incompreensível, pensável somente no discurso teológico-religioso da fé, da pretensão altaneira, muito longe das capacidades chãs da razão. Que haja uma metafórica, isto é indiscutível, mas a prosa asimoviana é tão belamente construída dentro dos termos estabelecidos pelo gênero sobre o qual trabalha (verossimilhança científica, cuidado para com os métodos da ciência, especulação prognóstica nos limites das possibilidades científicas de uma determinada época) que facilmente podemos concluir uma série de causas naturais, dentro do universo da obra, para os limites do intelecto dos povos de Lagash. Com efeito, uma espécie de humanóides desenvolvida em um ambiente mui atípico para nós terráqueos só poderia ter evoluído seu cérebro e suas capacidades cognitivas de maneiras alienígenas, estranhas para os humanos da Terra. É claro que o medo do escuro é mais potente nessa espécie: eles nunca tiveram, de forma natural, algo como a "noite". Do mesmo modo, quiçá alguma civilização humanóide de algum outro planeta longínquo lesse A Crítica da Razão Pura e afirmasse, estupefata: "mas como, para eles a ideia de Deus é inefável? E no entanto é clara feito neve para nós!".
Entretanto, subjaz a metafórica. Subjaz, entendamo-lo bem, a ilustração artística da razão no encontro com seus limites, passando outrossim à loucura. O conflito é iluminista, quem pode vencer neste embate de proporções homéricas? "...quando chegar o acontecimento da verdade, seu cérebro será apresentado a um fenômeno fora do seu limite de compreensão. Você vai ficar louco, totalmente e permanentemente louco!". O númeno se fazendo fenômeno, o profeta sendo iluminado pelo Senhor, o poeta possuído pelas musas!... O liame da narrativa é o encontro do homem com Deus; um encontro tão banal, talvez, quanto o cair da noite e das estrelas.