skuser02844 24/08/2014
“E o que há de mais inverossímil do que a própria verdade?”
É em tom de confissão que José de Alencar nos apresenta a um dos mais poderosos romances da nossa literatura. Lembrando-nos esporadicamente de que se trata de uma história “real” trajada de ficção, o autor aperfeiçoa seu estilo nessa que é uma de suas últimas obras e a principal da sua fase de romance urbano, utilizando da escrita que lhe é tão característica e por ela criticado. Seu vocabulário rebuscado pode intrincar os olhos do leitor de hoje, assim como suas longas descrições, mas sua arte em esconder o jogo através das palavras e o fino sarcasmo garantem que se trata de uma obra autêntica, singular, uma especiaria de um grande autor.
Em tempos de filmes e livros que saturam nossos sentidos com acontecimentos rápidos e explosivos, o uso de “arrebatadora” tornou-se vulgar, mas não vejo outro uso da palavra se não para definir a obra de Alencar. Íntima, violenta e indecifrável, “Senhora” derrota o leitor naquela cartilha conhecida do autor de lidar com sentimentos tão puros e circunstâncias que os corrompem. O peso do reprimido e da humilhação é aliviado na sátira sobre a decadência da elite carioca do século XIX, e nas rápidas aberturas daqueles corações feridos que ainda batem um pelo outro.
O romance é dividido em quatro partes que mais são fases daquele amor tão cheio de ressentimento e resistência, mas não obedecem a uma ordem cronológica para que possam presentear o leitor com uma clássica reviravolta, que mudará o rumo e a carga emocional do livro. Preço, Quitação, Posse e Resgate são os “quatro atos” de uma história de amor que tem como cerne o casamento e a partir daí todos seus antecedentes e implicações. O dinheiro, de tão forte, torna-se um personagem decisivo na vida dos dois protagonistas. A vingança, realizada com tanto gosto, põe a ambição e a honra como limites da dignidade para toda a repressão e humilhação passadas pelo casal. A dor, essa tão infinita e profunda, obscura o caminho rumo à confiança, ao verdadeiro, à felicidade que para alguns é tão intrínseca, e para outros tão fugitiva.
Nessa jornada do dilaceramento emocional, é impossível não referir-se à Aurélia Camargo como uma das grandes damas da nossa literatura, ao nível de Capitu e Ana Terra. Símbolo da independência e força feminina, Aurélia fez da origem pobre sua fortaleza contra as falsidades e mazelas trazidas pela riqueza, e de sua sabedoria inata o talento em adaptar-se aos costumes sociais e deixar a elite carioca aos seus pés. Claro, nunca rebaixando seu espírito altivo, nem mesmo ao “comprar” sua felicidade por cem contos de réis. Nem mesmo quando a vingança é realizada e os meses de sofrimento se desenrolam, num intenso exercício de autocontrole, acidez e sobriedade para provar a si mesma que aquele Fernando Seixas, tão materialista e vendido, ainda podia ser aquele homem classudo e bom de coração pelo qual se apaixonou outrora.
Personagens complexos, incertos, feridos, imprevisíveis; é difícil saber qual o próximo avanço ou recuo permitido na balança entre o sentimento e a dor. São meses de humilhação, jogos de poder e vontades, desejo reprimido e coração ferido, um espetáculo de dois atores numa peça de sofrimento, ironia e aparência. Nessa valsa de idealismos e realidades, José de Alencar nos presenteia com uma das histórias de amor mais problemáticas, mas também das mais sinceras ao mostrar o amor passional como ele é, confuso e orgulhoso, mas belo e devoto. Permitindo-se citar a si próprio (além de autores como Victor Hugo e Thomas Chatterton), com o livro “Diva”, Alencar reforça ainda mais o tom de confidência e observação da realidade de sua obra, e solidifica a imagem de Aurélia como uma personagem feminina ao seu estilo. Intensa, impossível, complexa, de amor devoto e alma altiva, é a estrela fluminense da qual nunca esqueceremos.