Procyon 10/04/2022
Ele que o abismo viu ? Resenha
Gilgamesh era rei na cidade de Uruk (na antiga Mesopotâmia, atual Iraque), por onde existiam dois deuses protetores: Anu, o deus do céu, e Ishtar, a deusa da fertilidade e do amor. Gilgamesh era filho de uma rainha-deusa, a rainha Ninsuna, com o rei anterior Lugalbanda (há considerações de que seu pai seria, na verdade, um demônio). Sua constituição se dá, então, como dois terços divino e um terço humano: o que significa que ele era poderoso, mas sobretudo mortal. Como rei, ele exercia sua soberania de forma tirana: mandando a população construir muralhas, recrutando jovens em expedições militares, além de desvirginar as noivas do reino. Os súditos, então, começaram a clamar pela intervenção divina. Para travar os excessos do rei, os deuses então criam, a partir do barro, Enkidu, um ser tão poderoso quanto Gilgamesh, feito sob forma e semelhança com o deus Anu, e é deixado em uma região montanhosa longe da civilidade. Enkidu vivia então como no paraíso, desnudo, sem acesso à humanidade, vivendo como os animais selvagens, além de desfazer as armadilhas que os caçadores faziam. Certo dia, um jovem caçador, vendo a criatura desarmando as armaduras, avisa pai, e este pede ajuda ao rei de Uruk. Gilgamesh o aconselha que encarregue uma das sacerdotisas de Ishtar (as prostitutas sagradas). Enkidu é seduzido, provando dos prazeres carnais durante 7 dias. Ele é ensinado a comer pão e a beber, tornando civilizado, e, consequentemente, desvirtuado de sua natureza. Ele conduzido até a cidade de Úruk, por onde fica sabendo das desmedidas do rei, e, no momento em que Gilgamesh dirige-se à câmara nupcial, seu igual o rebate. Os dois lutam na rua, de um modo espetacular, o que serve para selar sua profunda amizade. Gilgamesh, encontrando seu igual, parte com ele para aventuras envolvendo monstros e deuses.
Eles partem para a lendária Floresta dos Cedros, onde combatem e vencem o seu guardião, o monstro Humbaba, que cuspia fogo. Enkidu demonstra remorso dizendo que haviam ?transformado a floresta em deserto.? Após o seu regresso a cidade com a madeira da floresta e a cabeça do monstro, a deusa do amor tenta seduzir Gilgamesh, que a rejeita. Como vingança, Ishtar convence Anu, o deus supremo do panteão sumério, a enviar o Touro de Céu, que causa grande devastação. Os dois matam o touro com incrível facilidade, porém, Enkidu, ao ver Ishtar próximo às muralhas de Úruk, corta um pedaço da criatura e lança-o contra a deusa, que fica furiosa. Enkidu é, então, marcado pelos deuses para morrer, adoecendo gravemente. Gilgamesh lamenta-se amargamente, e, após sua morte, o rei se vê desesperado com a consciência de sua condição de mortal, lançando-se em uma busca pela imortalidade.
Nesta busca o herói encontra Utnapistim, sobrevivente de um grande dilúvio que acabara com toda a humanidade. Utnapistim conta a Gilgamesh sobre uma planta que cresce sob o mar e que confere a imortalidade; com grande dificuldade o herói consegue obtê-la, mas, em um momento de descuido, a planta é roubada por uma serpente. Gilgamesh retorna a Uruk, encontrando as grandes muralhas construídas por ele, que seriam sua grande obra duradoura. Assim decide se tornar o melhor rei que Uruk já teve.
Gilgamesh, de acordo com a lista de reis da Suméria, o quinto rei de Úruk. Ele possui um caráter semilendário, sendo conhecido por ser o personagem principal da Epopeia de Gilgamesh, um épico mesopotâmico preservado em tabuletas escritas com caracteres cuneiformes. Gilgamesh, inclusive, surge como a primeira ideia de um herói nacional. Ele, segundo as lendas, era um rei sumério, que foi o primeiro império a surgir na região mesopotâmica (o berço da humanidade). Eles foram os inventores da escrita cuneiforme, a primeira forma de registro escrito da humanidade. Histórias contadas passaram então a serem escritas. Foram criadas as primeiras bibliotecas, com tabuinhas de argila que passaram a se espalhar por outros recantes do mundo, de forma que diferentes traduções de ?Ele que o abismo viu? surgiram em diferentes partes do mundo, servindo também a outras línguas de outros povos que cultivaram entre si níveis variados de interação ? a saber, no idioma acádio, eblaíta, elamita, persa antigo, hurrita, hitita, palaíta, luvita, urartiano e ugarítico. O mundo de Gilgamesh, portanto, supõe e depende inteiramente da escrita cuneiforme, sendo a primeira verdadeira obra da literatura mundial, o texto literário mais antigo a ter uma longa circulação e l mais antigo texto da qual recuperou-se traduções em várias línguas.
?Ele que o abismo viu? é um longo poema cuja versão ?padrão? foi compilada no último terço do II milênio a.C.em acádio, baseada em histórias mais antigas. Na obra, o rei é apresentado como filho de Lugalbanda e uma deusa, Ninsuna (ou Nimate Ninsum). Gilgamesh era, assim, um semideus, descrito como dois terços deus e um terço humano, dotado de força sobre-humana. Segundo a lista de reis sumérios, ele era filho de um ?demônio? ou ?fantasma? (no qual o significado da palavra no texto é incerto) e seu reinado teria durado 126 anos.
A primeira parte do poema se contem a fazer uma ode a Gilgamesh, narrando as proeza e grandeza do herói, e sua decorrente arrogância e tirania. O poema narra como Gilgamesh, depois do dilúvio, passa por experiências existenciais marcantes que o levam a compreender os limites da natureza, os quais se impõem mesmo para alguém como ele, filho de deuses. Nessa primeira parte, após enaltecer a natureza superior do herói, em que os habitantes pedem aos deuses uma solução, Enkidu é dado como um companheiro à altura de Gilgamesh, a personificação do homem primitivo, de forma que ele é atraído pela cidade (representada pela mulher civilizatória presente na figura de Shámhat) ? dando cabo da queda do homem e a perda da pureza ?, em uma espécie de iniciação que principia a transição do mundo animal para a sociedade humana. A partir confronto com o rei Gilgamesh, que resulta no selo de sua amizade, e vencem Humbaba e o Touro do Céu (daí a constelação) em rumo de fama; existe também a revelação do lado sombrio de Ishtar, em que todos que se relacionavam com ela morriam ? sombrio como a Lua Nova. A segunda parte se inicia de modo lúgubre, pois Enkidu abatido pela doença, onde são seguidos prolongados lamentos. Gilgamesh toma consciencia do destino e parte em busca da imortalidade, tendo contato com seres extraordinários. Após seu retorno, a ação fecha-se como se abrira, aquilo que o herói traz consigo na volta não é algo material, mas sim a certeza de que a vida humana tem seu lugar no espaço de convivência com outros homens, configurado pela cidade. Dessa forma, ?Ele que o abismo viu? se faz como um poema cíclico. A história de formação do grande rei de Uruk que aceita o Inevitável para viver bem o tempo que lhe foi dado.
Esse material passou milênios desconhecido. A edição que aqui se faz presente é uma tradução comentada, configurada de forma primorosa pela edutora Autentica, reunindo, também, notas imprescindíveis. É uma edição crítica baseada nas descobertas do assiriólogo Inglês Andrew George e traduzida por Jacyntho Lins Brandão para a Língua Portuguesa. Faz pouco mais de um século que a matéria de Gilgamesh se introduziu no nosso cânone da literatura antiga, de modo que milênios foram esquecidos para o computo da história. Portanto, o texto, rico em sua composição, torna-se indispensável para a leitura de grandes épicos da antiguidade. A história suméria serviu de influência para a formulação da narrativa hebraica sobre o dilúvio, além muito outros aspectos, sendo também perceptíveis semelhanças com a literatura (e a mitologia) grega, e até mesmo com Homero.