João Pedro 20/12/2023Delicioso desafioDemorei um tanto para terminar de ler "A cidade sitiada", de Clarice Lispector. Esse é um dos três primeiros romances da autora, escrito antes de ela completar 30 anos (junto a este, há "Perto do coração selvagem", que já li, e "O lustre", que ainda não li).
Sinceramente, se me perguntarem do que se trata o livro, não saberei dizer. Também senti essa dificuldade com "Perto do coração selvagem", mas ali havia um contorno maior a que se apegar. Digo, parecia haver uma estrutura sólida de enredo e, ao redor, uma miríade de pensamentos, um intenso e delicioso fluxo de consciência a levar o leitor a um passeio pela mente de Clarice. Mas "A cidade sitiada" é diferente, pois, apesar de muito relacionado aos objetos, às coisas que compõem o subúrbio de São Geraldo, é um romance sem uma forma mínima definida.
O capítulo 4, "A estátua pública", por exemplo, possui 20 páginas e se passa inteiramente dentro de um apartamento e da mente da protagonista, Lucrécia Neves. O capítulo 5, "No jardim", como que indo além no desafio ao leitor, é todo uma espécie de sonho.
Foi a leitura mais desafiadora que já fiz de Clarice Lispector. Um romance que é também um mistério, um enigma, e nem por isso deixa de ser bom. Ou talvez por isso justamente seja uma excelente leitura se a pessoa estiver disposta a tanto.
No posfácio escrito por Benjamin Moser, um alento a quem sentiu dificuldade e chegou até o fim: "Em 1971, Clarice Lispector disse a um entrevistador que lesse A cidade sitiada – 'se você conseguir', acrescentou, em tom de dúvida. 'Eu mesma acho difícil.' Em outro lugar ela se referiu a seu terceiro romance como 'um dos meus livros menos gostados', e professou sua perplexidade com a história da garota de São Geraldo".