jota 21/02/2018Amor incondicionalToda a Vida Pela Frente, a emocionante história do garoto árabe Momo e sua protetora, madame Rosa, já se tornou uma de minhas leituras favoritas do ano. Obra que Romain Gary (1914-1980), escritor francês nascido na Lituânia, escreveu sob o pseudônimo de Emile Ajar e que se tornou um grande sucesso literário a partir de sua publicação em 1975. Transposto para o cinema em 1977 deu à França o Oscar de melhor filme estrangeiro no ano seguinte.
Estamos em Paris, na década de 1970, numa parte nada charmosa da cidade, Belleville, habitada sobretudo por imigrantes árabes e africanos pobres. Muitos deles sem profissão definida, vivem de expedientes variados, inclusive prostituição e mesmo tráfico de drogas. Ali também mora uma idosa judia chamada madame Rosa (no cinema, Simone Signoret), uma sobrevivente de Auschwitz, que durante grande parte de sua vida foi prostituta e que agora, fisicamente decadente, ganha a vida tomando conta dos filhos pequenos de outras prostitutas das vizinhanças.
Madame Rosa tem um menino argelino aos seus cuidados, Mohammed, ou Momo, de dez anos, seu preferido, que a ajuda em diversas tarefas e que ela criou desde os quatro anos; seus pais nunca apareceram para visitá-lo, saber dele. Sempre que Momo pergunta pelos parentes, madame Rosa lhe dá respostas evasivas. No fundo, tanto a velha prostituta quanto o garoto tem apenas ao outro para dividir as pequenas alegrias e os dissabores da vida que levam, quase miserável.
Mas Toda a Vida Pela Frente não é um livro triste, ainda que seja pontuado por uma espécie de felicidade amarga, nada disso. O título em si é bastante positivo, demonstra esperança no futuro, e se refere a Momo, o narrador (na verdade, o livro é um imenso monólogo), que é um menino bastante esperto, que tem um modo próprio de ver a vida e as pessoas que o cercam, com muitos conhecidos curiosos na vizinhança, que pratica pequenos roubos, que ganha alguns trocados das prostitutas pois é um garoto bonito etc. E sobretudo Momo tem amor incondicional pela velha prostituta, cuida dela com o máximo empenho e carinho, com infinita ternura, o que torna essa história cativante página após página.
Conhecemos diversos personagens interessantes que participam da vida dos dois protagonistas, especialmente Lola, um travesti que no passado foi lutador de boxe. Sempre que pode Lola ajuda a velha senhora e Momo, especialmente fornecendo-lhes dinheiro pois aos poucos as prostitutas foram retirando seus filhos dali para entregá-los a outras cuidadoras, sem os problemas de madame Rosa. Com o passar do tempo ela se torna mais dependente de Momo, do doutor Katz, um velho médico seu amigo, de Lola e de outros vizinhos. Além dos problemas físicos a idosa também tem momentos em que se desliga da realidade e imagina que os nazistas ou a polícia estejam em busca dela para mandá-la de volta para o campo de concentração ou a prisão. Outras vezes imagina que está com câncer, vai morrer, mas não quer ser internada num hospital de modo algum. Não quer que os médicos prolonguem seu sofrimento, usem seu corpo como outros homens o usaram em outros tempos.
Nesse momento estamos próximos do final do livro e então a figura de Momo cresce grandemente através de seus esforços para que os últimos dias da velha senhora sejam menos sofríveis. Mas as coisas se complicam pois o dono do apartamento em que vivem, e que está sem receber o aluguel há três meses pois ficaram sem renda, exige o pagamento da dívida. Então Momo, contando com sua inteligência de menino sagaz, com sua sabedoria e conhecimento do mundo adulto, tem de se virar para arranjar uma solução que não moleste ainda mais madame Rosa.
Toda a Vida Pela Frente é daqueles livros que nos interessam o tempo todo, que nos comovem e também nos fazem rir (ou sorrir) e que nos falam mais diretamente ao coração do que ao cérebro, enfim uma leitura imperdível para esses tempos de desamor e tecnologia.
Lido entre 13 e 21/02/2018.