Ana Aymoré 20/07/2020A segunda parte de uma jornada autobiográgicaLinha M (2015), é o segundo relato memorialístico de Patti Smith, publicado cinco anos após o cultuado Só garotos. Se na primeira incursão autobiográfica a icônica multiartista norte-americana revisitava seus anos de juventude em meio à contracultura de vanguarda dos anos 1970, e através de seu relacionamento com Richard Mapplethorpe - companheirismo duradouro que propicia, a ambos, um processo de autodescoberta e suporte mútuo no desenvolvimento respectivo de seus talentos -, em Linha M ela evoca seus anos de maturidade, entre cafés, viagens, gatos e séries de detetive, nos quais a literatura, sua mais antiga paixão, volta a ocupar um papel central (aliás, um atrativo a mais deste livro se encontra justamente nos comentários de Patti sobre suas paixões literárias), mas um tempo também devastado, em meados dos anos 1990, pelas mortes consecutivas do marido Fred Sonic Smith e do irmão Todd.
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A ideia de um livro (impossível) sobre o nada, que se apresenta a nós desde a frase de abertura e cristaliza-se no ideograma Mu (nada) na lápide de Yasujiro Ozu, traduz-se, então, nas múltiplas dimensões da perda. O esquecimento de objetos os mais variados (uma câmera Polaroid, a Crônica do pássaro de corda de Murakami, as fotografias do túmulo de Sylvia Plath), ou aqueles outros, como o velho casaco preto do poeta, que partem misteriosamente para habitar o Vale dos Perdidos, ou, ainda, o esquecimento, como a inquietante constatação de não lembrar mais nada do conteúdo de um livro favorito - todos os desdobramentos cotidianos da dor mais aguda de uma perda que é irremediável, do ser amado. E todas as tentativas inúteis ou frustradas de reparação: reter, guardar, memorizar, fotografar. Polaroides em preto-e-branco de palavras e imagens que, a cada página, espalham-se diante de nós como cartas de tarô, a mercê da dissolução inevitável, mas que, enquanto isso, testemunham a verdade dessa mulher extraordinária, despida de qualquer traço de arrogância, que nos estende as mãos alongadas de sacerdotisa (ou artista, ou poeta): "ofereço meu mundo numa bandeja cheia de ilusões".