Euflauzino 15/11/2016Escancarando as portas do inferno
Se o primeiro livro que li tivesse sido uma biografia ou um tratado de filosofia ou ainda um bom romance romântico, talvez não tivesse sido arrebanhado. Mas como curioso adolescente que fui, escolhi um livro de terror e tive a alma tocada, então irremediavelmente tomada e tragada pelo poder de um quarto escuro. Isso também é rock’n’roll, baby!
Evangelho de sangue (Darkside Books, 320 páginas) é a aguardada continuação de “Hellraiser – Renascido do inferno” de Clive Barker. É o embate entre dois personagens icônicos do autor, colisão entre dois universos díspares: o detetive sensitivo Harry D’Amour e o Cenobita Pinhead.
De onde Barker tira suas ideias? Será que ele sonha com isso? Entendo que os livros de Barker são a personificação de meus pesadelos, a concretização do que me assombrava quando criança, transmutação de agonia em realidade. Ele dá voz a coisas que eu gostaria que estivessem enterradas e ao mesmo tempo, pela curiosidade, anseio que se revelem.
Já no início, Pinhead aparece em grande estilo, em toda sua glória e insanidade, para enlouquecer e atemorizar (torturar) aqueles que se opõem aos seus desígnios de poder:
“... Ele era alto, bastante similar àqueles nos livros de demônios notáveis sobre os quais aquelas pessoas tinham se debruçado nos últimos meses, procurando em vão por alguma possível fraqueza da criatura. Era óbvio que não encontraram nada. Mas agora, quando surgia em carne e osso, havia um distintivo senso de humanidade naquele ser; algo do homem que fora no passado, antes que os trabalhos monstruosos de sua Ordem tivessem sido feitos. Sua carne era vitualmente branca, a cabeça careca tinha sido ritualisticamente marcada com sulcos profundos que corriam tanto horizontal quanto verticalmente, sendo que cada interseção um prego fora martelado através da carne sem sangue até o osso... Quaisquer que fossem os tormentos que ele planejara para aquelas últimas vítimas – e o conhecimento que tinha da dor e seus mecanismos teriam feito os inquisidores parecerem um bando de valentões de jardim da infância...”
E seu futuro oponente – Harry D’Amour, protegido por inúmeros sigils tatuados pelo corpo (que lhe avisam dos perigos e mantêm seu corpo fechado) se põe a relembrar de um evento que marcou sua vida:
“Enquanto falava, Harry olhou para o bode e depois para a porta aberta. As chamas azuis das velas tinham se aventurado para a rua, sem estarem ligadas a pavios ou cera. Elas estavam iluminando o caminho para alguma coisa. A intuição de Harry disse a ele que não era bom estar por perto quando esse Algo enfim se revelasse”.
O encontro entre os dois é inevitável, já que o detetive esbarra inúmeras vezes com demônios em suas aventuras pelo lado escuro. D’Amour é vítima de seus fantasmas do passado e no presente de uma armação. Acaba induzido a resolver o enigma da Caixa de Lemarchand. Irá pagar caro por isso. Os jogos se acabaram, agora é a Guerra:
“’Não se incomode em correr, Harry D’Amour,’ o Cenobita falou. ‘Pois não há para onde ir.’
‘Você... sabe o meu nome’, Harry disse.
‘E você, sem dúvida, sabe o meu. Diga-me, Harry D’Amour, quais palavras ouviu serem sussurradas que o fizeram deixar de lado os confortos do lugar-comum para viver, como me foi dito que vive, envolvido em constantes conflitos contra o Inferno?’
... O Cenobita fez um gesto com a mão esquerda e outro gancho e corrente atravessaram a porta, desta vez oscilando rente ao chão como uma serpente e, então, de repente saltando sobre o peito de D’Amour...”
A resolução do quebra-cabeça abre o portal que liga o inferno ao nosso plano e como podem ver pelo diálogo acima, o clima esquenta. Os sinais de que há algo errado estão por toda parte, nem é preciso ser sensitivo para percebê-lo, o mal quer dominar nosso plano:
“Houve um bom número de sinais de que algo de consequências substanciais estava prestes a acontecer em Nova York naquela noite. Para aqueles que sabiam ler os sinais – ou escutá-los, ou cheirá-los –, eles estavam em toda parte: na elegância sutil do vapor que saía dos bueiros em várias avenidas, no padrão da gasolina derramada de cada batida de carro que envolveu uma fatalidade, no estrondo causado pelos milhares de pássaros que circulavam por sobre as árvores do Central Park, num horário em que, em uma noite qualquer, estariam dormindo e em silêncio e nas orações que as almas sem-teto murmuravam, escondidas por questões de segurança onde o lixo era mais abominável.
... Harry parou de falar. Cada gota de tinta na sua pele lançou subitamente um brado de guerra; o som de mil sirenes silenciosas, todas de uma só vez. Foi como levar um chute na barriga. Ele perdeu o fôlego e caiu no chão...
‘Deve estar chegando perto’, Dale disse.
‘Acho que sim. Seja o que for, é grande’, Harry completou. ‘Temos de ir agora. Antes que chegue aqui.’
‘Antes que o que chegue aqui?’, Lana perguntou.
Dale virou-se e respondeu a questão.
‘O inferno.’”
Como se não bastasse esse problemão, Pinhead resolve arrastar a grande amiga de D’Amour, Norma Paine, para o inferno, não sem antes seviciá-la de todas as formas possíveis para satisfazer seus desejos vãos e provocar a ira do detetive. Junto a alguns amigos, o detetive partirá para o inferno para salvá-la. O que está em jogo é mais que a vida de sua amiga, há um propósito para tudo e o equilíbrio do universo pode estar em suas mãos. Definitivamente não é para estômagos fracos, nem para os excessivamente religiosos. Há violência, sexo e sangue, o flagelo de qualquer educação religiosa.
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