Mari 19/06/2020
Como o feminismo nos salva de termos vidas invisíveis
'Sabe aquela brincadeira de rabo de burro?'
'Quê?'
'Aquela brincadeira de rabo de burro. Quando a gente tapa o olho da criança e
diz que ela tem que colocar o rabo no burro. Aquela que a gente fazia nas quermesses da igreja.'
'Sim.'
'A vida é como essa brincadeira, Eurídice. Às vezes a gente acha que está fazendo tudo certo, mas quando se dá conta descobre que estava com os olhos tapados e não consegue acertar de jeito nenhum.'?
Não imaginava que gostaria tanto desse livro, marquei várias passagens. Escuto falar dele há um tempão, mas só fui pegar pra ler por causa do filme, que foi muito elogiado. Conclusão: toda mulher deveria ler esse livro!
O livro relata a vida das mulheres na metade do século XX, fazendo um contraste com a vida de duas irmãs. Eurídice, que tentou fazer tudo que era esperado dela (casar, cuidar da casa e ter filhos), mas sempre estava infeliz. E sempre que ela tentava mudar um pouquinho sua rotina, era alvo das fofocas das vizinhas invejosas e das reclamações do marido, que frequentemente gritava com ela, porque de acordo com ele, ela não era virgem quando casou, independentemente do quanto ela negasse (e isso era considerado um bom marido). Como o livro conta várias vezes, ela era uma mulher muito inteligente, ela podia ter sido engenheira, empresária, musicista, escritora, chef de cozinha ou ativista, se tivesse tido uma oportunidade ou um mínimo incentivo. É doloroso ler sobre a vida dessa mulher tão real, cheia de sonhos e desejos, presa em uma vida que não queria ter, por não ter tido a oportunidade de ser a mulher que queria ser. Isso nos faz pensar sobre como nosso país perde, por causa do pouco acesso das minorias ao conhecimento e às oportunidades (ainda mais depois de o ex-Sinistro da Educação ter revogado as cotas de pós-graduação). E Guida, sua irmã mais velha, que sempre fez o que quis sem se importar com o que a sociedade esperava dela. Mas, a sociedade não podia permitir isso, que uma mulher pudesse tomar o que quisesse ou viver como quisesse, então ela tinha que ser julgada, xingada e cuspida. Para os homens, era a vagabunda; para as mulheres, a arrogante e para o pai, a que morreu, quando fugiu de casa.
Queria muito um livro sobre a Das Dores, apesar de achar sua proposital quase-ausência um dos pontos altos do livro, porque se uma mulher branca de classe média-alta, como Eurídice, era invisível, imagina a empregada dela. O mesmo acontece com as personagens negras, que são praticamente ausentes, quase nunca possuem nomes e sempre são vistos pela lente da sociedade racista. Os homens são feiticeiros, as mulheres, prostitutas e as crianças, "mulatinhos" (como as personagens falam no livro) que precisam da caridade daquelas mulheres brancas tão boazinhas que nem um pouquinho promovem o racismo que essas crianças e seus descendentes sofrerão a vida inteira.