spoiler visualizarMaria Faria 31/10/2016
Final Surpreendente
Pénélope Bagieu nasceu em Paris no ano de 1982. Estudou cinema de animação na Ensad – École Nationalle Superiéure des Arts Decoratifs – e fez uma passagem pela Central Saint Martins de Londres. De volta a Paris em 2007, cria um blog ilustrado no qual mostra seu cotidiano com humor, tornando-se assim uma das quadrinistas mais conhecidas da França.
Uma Morte Horrível é sua primeira narrativa longa e arriscaria a dizer que uma das mais surpreendentes graphic novel que já li. Ainda com a lembrança da leitura de Entre umas e outras de Julia Wertz, uma autobiografia sem muitas surpresas e pouco surpreendente, não esperava muito desta HQ. Somos apresentados a Zoé, uma jovem com um emprego péssimo e desanimador, um namorado grosseiro e desempregado. Ela trabalha como hostess participando dos mais variados eventos, promovendo carros caros e tendo que suportar a audácia das mãos dos clientes em um dia e vestindo-se de queijo para uma feira em outro. Sua rotina alterna entre o ambiente hostil em que trabalha e um lar com um namorado horrível que a espera no final do dia. Até que um dia Zóe conhece por acaso o famoso escritor Thomas, que vive um momento de total ausência de inspiração para escrever sua próxima obra.
É quase impossível falar das qualidades de Uma Morte Horrível sem revelar spoilers. Zóe não conhece nada do mundo literário, mas depois que conhece Thomas acaba se envolvendo com ele e entrando num mundo misterioso. Ela deixa para trás o emprego e o companheiro horrível e vai viver dias amorosos no grande apartamento de Thomas. Apesar de não saber diferenciar um grande autor de outro, Zoé ressuscita a inspiração de seu novo amor e ele passa a escrever um de seus melhores romances.
O quadrinho vai mostrar um amor poético e suave até o momento em que a jovem percebe que Thomas não sai de casa nem mesmo para fazer compras e até mesmo a incentiva a ir sozinha. Sem falar que um belo dia aparece em seu apartamento sua editora que Zoé descobre mais tarde ser sua ex esposa. É claro que a presença de Aghate, a editora, provoca ciúmes, mas este não é o ápice da HQ. Enquanto Thomas escreve desenfreadamente, a jovem sai para passear e passa por uma livraria. Lá descobre o grande segredo de seu novo amor: Thomas Rocher é um escritor famoso com várias obras póstumas no topo da lista de mais vendidas. Rocher é romântico e o oposto do antigo namorado de Zoé, mas vive uma vida mentirosa, fingindo ser um autor morto, tudo pelo sucesso de suas obras. Desde que começou a ser atacado ferozmente pela crítica, por ideia de Aghate, o famoso autor simulou sua morte como forma de voltar ao topo do mundo literário. Esta é a motivação para viver recluso em seu grande apartamento.
As obras escritas e publicadas na atualidade eram anunciadas como manuscritos encontrados após a morte de Thomas. Claramente Zoé se sente enganada e manipulada e começa a perceber que Thomas é obcecado por fama e sucesso, ainda que para isto tenha que viver eternamente enclausurado como um autor falecido.
Em uma conversa com a editora, a jovem percebe que o perfil obsessivo pelo sucesso também foi a causa do fim do antigo casamento. Com o tempo, embora seu novo amor prometa apenas finalizar o atual romance e saírem em uma viagem, Zoé percebe que a obsessão de Rocher pelo seu trabalho faz dela apenas um objeto inspirador e de diversão para o autor. Sentindo-se triste e diminuída procura Aghate para conversar e neste ponto surge a grande surpresa de Uma morte horrível.
As duas se unem e lançam o livro de Thomas como se a escritora fosse a jovem Zoé. A “nova autora” fica muito famosa logo no lançamento do primeiro volume de três do romance “As irmãs de areia” e para completar a reviravolta da história, Aghate e Zoé formam um casal feliz capaz de curtir o sucesso proporcionado pelo mundo da literatura sem perder a essência de apreciar a companhia uma da outra.
Esta HQ pode parecer apenas uma história divertida e surpreendente, mas ela é uma crítica ao mundo literário e à postura do autor. Thomas representa muitos autores que não conseguem se libertar de seu grande ego e que são capazes de qualquer manobra para voltarem ao topo da fama no mundo da literatura. Além da crítica à busca desenfreada por sucesso literário, a graphic novel apresenta também duas mulheres manipuladas e relegadas a segundo plano por um autor com ego inflado, que se unem enterrando o falso morto de uma vez por todas. O título não está relacionado à falsa morte do famoso autor, mas sim à manobra final que o enterra de vez e traz para primeiro plano as pessoas que ele tratava como objetos de alcance para o sucesso.
Sem dúvida, uma bela e encantadora história capaz de nos mostrar que nem tudo poderá estar sob controle. A atitude politicamente incorreta das duas personagens de Pénélope Bagieu não invalida toda a discussão belamente apresentada nesta graphic novel. Além do enredo e final marcantes, o traço é delicado e atraente. As cores de fundo ajudam o leitor a perceber os acontecimentos marcantes em cada momento da história e Zoé é a personagem com a qual qualquer jovem com mais de vinte anos se identificaria. A autora retrata tanto os momentos de glamour como as partes em que a personagem está despenteada e cansada depois de um dia de trabalho. A editora foi assertiva em trazer um traço tão bonito acompanhado por uma história que foge das autobiografias tão comuns entre as últimas publicações.