spoiler visualizarLuiza 29/05/2013
Uma heroína ambígua, mas forte e corajosa!
"Moll Flanders" é uma história muito interessante e tem vários trechos dignos de reflexão. Escrito há quase 300 anos (é de 1722), é uma obra prima de Daniel Dafoe (embora não tão famosa quanto seu livro "Robinson Crusoe", de 1719). Seu título original é "The Fortunes and Misfortunes of the Famous Moll Flanders Who Was Born In Newgate, and During a Life of Continu'd Variety For Threescore Years, Besides Her Childhood, Was Twelve Year a Whore, Five Times a Wife [Whereof Once To Her Own Brother], Twelve Year a Thief, Eight Year a Transported Felon In Virginia, At Last Grew Rich, Liv'd Honest, and Died a Penitent. Written from her own Memorandums."
Para quem gosta de clássicos, é um prato cheio!!! Recomendo conhecer essa mulher cheia de conflitos e defeitos, mas indubitavelmente forte, corajosa, inteligentíssima e profundamente sensível.
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Muito triste a vida das mulheres no séc. XVIII (aliás, quando é que as mulheres não foram vítimas exploradas, difamadas e diminuídas, de alguma forma, em função do seu sexo?)
A obra "Moll Flandres", escrita em 1722, não começa parecendo ser sensacional como eu imaginava. Isso porque a narrativa da protagonista, que se apresenta no início simplesmente como Srª. Flandres, é acelerada, como se ela estivesse apenas escrevendo um diário.
A leitura flui facilmente, pois o autor não utiliza uma escrita rebuscada. E são tantos costumes diferentes que a história fica interessante, mesmo nas parte mais repetitivas... Mas confesso que de início não me senti "presa" pelo livro, não tive vontade de DEVORÁ-LO.
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Bem, é interessante ir refletindo, ao longo da leitura, sobre a vida no século XVIII, quando os EUA ainda eram uma colônia da Inglaterra e os criminosos eram deportados como escravos ou criados para as plantações na Virgínia (eram literalmente comprados pelos donos das plantações). Na colônia, não se usava dinheiro: as negociações eram feitas com tabaco!. As viagens de navio eram temerosíssimas, os incêndios eram frequentes (aí já estou me referindo às cidades da Inglaterra), não existiam documentos de identificação tais como identidade, certidão de casamento ou nascimento; havia também a profunda divisão de classes, a terrível necessidade da mulher de se casar, o costume de deixar o filho para trás (abandonando-o ou incumbindo outros da criação do bebê, até mesmo vendendo-o)... A distinção de se usar roupa branca, os homens de peruca, e o valor altíssimo de certos objetos (por exemplo, um pedaço de renda ou de veludo custavam uma fortuna!). Enfim, uma série de detalhes que nos transportam a outro mundo.
Mesmo assim, o livro não estava me fascinando muito, porque a história é contada en passant, praticamente sem detalhes para enriquecê-la um pouco. Mas insisti - e foi bom...! Porque o início é bem interessante, e depois que Moll é presa em Newgate, a história começa a dar uma reviravolta e fica novamente interessante. Aí eu não consegui mais parar de ler!
Alguns definem a obra como um conto sobre o capitalismo, com diversas alusões a dinheiro, contratos, etc, que outros consideram como próprias da personalidade calculista de Moll (que era inteligentíssima), pois o conceito econômico não era familiar na época. Pra mim, não é o que parece, pois Mrs. Flanders tem essa preocupação eterna com dinheiro, e reflete sobre o valor econômico de tudo, inclusive (e, talvez, principalmente) o valor financeiro do casamento!
Bom, como trata-se de um livro escrito em 1722, um estilo com o qual não estou acostumada, insisti na leitura de propósito e deu certo: Fui definitivamente "conquistada" pelo livro quando Moll é, por fim, presa em Newgate como ladra. A parte mais repetitiva foram os longos capítulos dedicados à sua vida como ladra. Comecei até a achar a personagem insuportavelmente canalha, e me deu até vontade de vê-la logo presa. Mas o livro, como já disse, é um classicão... e procurei desestruturar meu hábito de leitura pra entrar na proposta de Defoe. Gente, não é tão simples ler um livro escrito há quase 300 anos de maneira "distanciada" da mentalidade que temos hoje...
Minha raiva começou porque Moll Flandres (parece que seu nome real era Mary Flanders), para não ter que trabalhar como criada de uma família rica, passa a vida inteira enganando, se prostituindo, roubando, dando golpes muito maldosos, e prejudicando as pessoas. Ela tem crises de consciência o tempo inteiro, mas só passa a refletir sobre sua conduta quando está presa em Newgate, na iminência de ser executada na forca...
Bom, tentei ler imaginando a condição de uma mulher pobre no século XVIII. Mas, por mais que o sexo feminino fosse muitíssimo sacrificado naquela época, bem, não sei se tal realidade justificaria as atitudes vis da personagem. Enfim, prossegui, esforçando-me para compreender a conduta de Moll com os "olhos" da época e para entender a proposta de Dafoe. Mas o fato é que comecei a não gostar dela, foi involuntário, passei a achá-la uma oportunista maquiavélica. No fundo, desejava apenas que ela se retratasse, parasse de roubar, de enganar os outros. Caramba, queria que ela tivesse vergonha na cara e procurasse um trabalho - como criada, lavadeira, o que fosse!
Mas, whatever, era o século XVIII (e, na verdade, Dafoe escreve como se tudo tivesse acontecido entre 1623 e 1683, e aí seria século XVII).
Toda essa angústia que senti em relação às atitudes imorais e ambíguas de Mrs. Flanders tinha sua razão de ser - o livro é mesmo um conto picaresco sobre a moralidade. E é exatamente esse aspecto ambíguo da personagem que me deixou irritada (esta era a intenção de Dafoe, ressaltar os dois ângulos de Moll, o lado moral e o lado amoral, ou imoral...).
O paradoxo da protagonista: ao desejar ser uma dama de sociedade ela comete adultério, prostituição, abandono de crianças, roubo, golpes e incesto. Por outro lado, ela pode ser vista como uma criminosa que alcança a paz (só depois dos sessenta anos!) com a confissão cristã e almeja a redenção. Dessa forma, a novela explora as ideologias conservadoras e liberais do século XVIII.
Bem interessante, não?
Aliás, longe de mim defender a prostituição, mas, de tudo que ela fez, na minha opinião, a prostituição e o incesto foram as faltas menos graves porque, ao menos nestes casos, ela não estava enganando ninguém. Ela era falsa, mentirosa, golpista e oportunista pra tudo, especialmente quando programava casar-se (e foram cinco casamentos!). Ao prostituir-se, ao menos estava vendendo o que era DELA MESMA e ninguém tinha nada a ver com isso... Além disso, não estava enganando ninguém. Mas, ironicamente, a prostituição e o incesto (do qual ela e o irmão eram totalmente inocentes) foram as "faltas" que MAIS lhe causaram remorsos. (!!!)
Quanto à crítica silenciosa que fui fazendo ao longo do livro (sobre ela e os maridos não trabalharem para viver), pesquisei um pouco e compreendi que era exatamente desta forma que o autor pensava em relação a atividade laboral para ganhar seu sustento: Defoe era um Puritano, que acreditava e escrevia sobre devoção e trabalho para alcançar a Divina Graça. Por isso a novela reserva muitas páginas para crime e pecado, mas transparece muito remorso - como já escrevi, Moll é uma personagem ambígua.
Ambígua, sim, mas extremamente corajosa, forte, sagaz e inteligente!
Da raiva que eu estava sentindo, acabei torcendo por ela e, por fim, acabei por admirá-la e amá-la! :-)
Como tudo acaba mais do que bem, parece até aquele continho de fadas, mas sem os clichês e sem atenuantes. Pois fala de um ser humano que comete erros, tem conflitos e sofre... Mas é também capaz de atitudes belas e muita coragem.
R.E.C.O.M.E.N.D.O.
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Seguem trechos que destaquei:
"Venturas e Desventuras da Famosa MOLL FLANDERS & Cia., que viu a luz nas prisões de Newgate e que, ao longo de uma vida rica em vicissitudes, a qual durou três vezes vinte anos, sem levar em conta sua infância, foi durante doze anos prostituta, durante doze anos ladra, casou-se cinco vezes (uma das quais com seu próprio irmão), foi deportada oito anos na Virgínia e que, enfim, fez fortuna, viveu muito honestamente e morreu arrependida; vida contada segundo suas próprias memórias."
* ("The Fortunes and Misfortunes of the Famous Moll Flanders", de Daniel Dafoe - escrito em 1722)
O interesse elimina seguramente todo vestígio de afeição. Pg. 67
Descobri, através de atenta observação, que os homens mais inteligentes vinham com a intenção mais estúpida para aqii que eu almejava. Por outro lado, os que faziam as melhores propostas eram pois mais enfadonhos e desagradáveis do mundo. Pg. 70
"Com efeito, os homens escolhem suas amantes de acordo com seu gosto. É indispensável para uma mulher vadia ser linda, ter um bom corpo, um belo rosto, e um porte gracioso. Mas, quando se trata de uma esposa, nenhuma deformidade contraria o desejo; nenhum defeito, o juízo favorável; só o dinheiro conta. O dote nunca é grotesco ou monstruoso, pois o dinheiro é sempre desejável, seja qual for a mulher." Pg 77
"Como dizia minha cunhada de Colchester, a beleza, o espírito, a educação, o bom senso, o humor, a conduta honesta, a virtude, a piedade ou qualquer outra qualidade física ou mental não constituem prendas. Só o dinheiro torna uma mulher desejável". Pg. 77
"Os homens tinham, por toda parte, uma tal possibilitade de escolha que a situação das mulheres era muito desgraçada. Pois elas pareciam oferecer-se em cada porta, e se, por acaso, um homem era recusado numa casa, tinha certeza de ser aceito na seguinte". Pg 78.
"A uma mulher não falta jamais a ocasião de se vingar de um homem que a tratou mal. Haveria muitas maneiras de humilhar semelhante indivíduo ou então as mulheres seriam, certamente, as mais infelizes criaturas do mundo". Pg. 79
"Eu não posso deixar de lembrar às minhas leitoras a que ponto elas próprias se rebaixam na condição de esposas - a qual, se posso dizer com toda imparcialidade, já é muito baixa -, colocando-se abaixo do estado natural, aceitando ser insultadas pelos homens, o que, confesso, não vejo necessidade de acontecer". Pg. 83
"A época esta tão depravada e o sexo tão vilipendiado que, em resumo, o número de homens aos quais uma mulher honesta pode se unir é, com efeito, muito pequeno, e só muito dificilmente se pode encontrar um homem no qual uma mulher possa confiar". Pg. ?
"Quem tem um mau marido sempre casou muito rápido, e quem tem um bom marido jamais casou muito tarde. Em resumo, salvo deformação ou reputação perdida, toda mulher pode fazer um bom casamento, cedo ou tarde, se ela se guarda bem. Mas, se ela age com precipitação, há uma oportunidade em dez mil de se salvar". Pg. 86
"Nada mais absurdo, desagradável e ridículo que um homem embriagado e tomado de desejo libidinoso. Dois diabos o possuem ao mesmo tempo e sua razão não pode mais governá-lo, assim como um moinho não pode funcionar sem água. Além disso, seu vício anula tudo de bom que possui, se é que o possui. Seu simples bom senso é esmagado pelo arrebatamento, e entrega-se a absurdos, tais como beber excessivamente e sair com uma prostituta, sem prestar atenção a quem ela é, se está saudável ou doente, limpa ou suja, se é feia ou bonita, velha ou jovem. De tão cego que fica, não consegue achar a diferença. Um homem desse é pior do que um louco. Aguilhoado por um espírito vicioso e corrupto, não sabe o que faz... É de homens como esse que fala Salomão: "Eles vão como uma rês para o matadouro, até que uma flecha lhes traspasse o fígado". É uma descrição admirável desta doença vergonhosa, cujo veneno mortal se propaga misturando-se com o sangue e tem o fígado por centro ou por fonte. Daí, pela rápida circulação do líquido, essa peste terrível e repelente alcança as partes vitais como um dardo". (Pg. 234)
"Homens sérios, considerados pela comunidade, renomados, não são melhores que os outros, apenas conservam uma aparência melhor, ou, se você quiser, são hipócritas mais refinados". (pg. 246)
"O caráter endurecido e diabólico que afeta a alma não passa de uma privação do pensamento; aquele que restabelece o poder de reflexão restabelece a si próprio". pg. 299
"Quem teme morrer se não sabe como viver?" (Pg. 273)
"É quase impossível acreditar que nossa natureza seja capaz de chegar a um tal ponto de degeneração, que ache agradável o que, em si mesmo, é a mais completa miséria". (pg. 295)
"Agora, com a perspectiva da morte, as coisas desta vida, como deve acontecer a qualquer um em semelhante situação, tomaram um aspecto diferente do que tinham antes. O que eu considerava mais importante e melhor, como a felicidade e a alegria, tornou-se tristeza. Só me interessavam, agora, coisas infinitamente superiores às da vida, a ponto de me parecer totalmente idiota dar importância ao que, na realidade, não tinha nenhum valor". Pg. 304
"Para os que dizem que nosso sexo é incapaz de guardar algum segredo, minha vida é testemunho evidente do contrário. Mas uma pessoa, seja do sexo feminino ou masculino, com um segredo tão importante, deve sempre possuir um amigo íntimo que compartilhe da alegria ou da dor; pouco importa quem seja. Interessa que exista, para que não se torne um duplo peso para o espírito, ou até insuportável. Chamo o testemunho humano para a verdade disso". Pg. 338
"A Providência, que normalmente trabalha por intermédio da natureza, se utiliza de causas naturais para produzir efeitos extraordinários". Pg. 339
"Eu amava sinceramente meu marido, como o havia amado desde o começo. E, diga-se de passagem, ele o merecia, tanto quanto isso é possível para um homem". Pg. 349
>>>>> Este trecho realmente me emocionou, porque, Deus me livre, me coloquei no lugar de Moll Flandres como mãe:
"Era demais para uma mãe ver seu próprio filho, belo, forte e em boa situação, e não ousar fazer-se reconhecer ou chamar a atenção. Toda mãe que leia estas páginas considere com que angústia tive que me conter. Como desejava beijá-lo e chorar em seus braços! Senti-me como se me estivesse contorcendo, e não sabia o que fazer. Não sei nem como descrever esta agonia! Quando ele se afastou, fiquei tremendo, e segui-o com os olhos até desaparecer. Sentei-me então na relva, num lugar que havia escolhido, e fingi deitar-me para repousar, mas estava só escondendo-me da minha companheira, e, tapando o rosto, chorei e beijei a terra por onde ele havia passado". Pg. 336
#CHOREI...
>>>>> Vou transcrever agora o trecho mais lindo do livro, que me fez chorar tanto que tive que parar a leitura para enxugar as lágrimas:
"Ele, então, veio diretamente até mim, beijou-me, mantendo-me apertada com tanta paixão que eu nem podia falar. Eu podia sentir o seu peito subir e arquejar como uma criança que soluça por dentro sem emitir um grito.
Não posso exprimir nem descrever a alegria que se apoderou de minha alma quando descobri, o que era fácil, que ele não vinha como um estranho, mas como um filho para sua mãe. Começamos a chorar, abraçados, durante muito tempo. Foi ele quem, por fim, exclamou:
- Mãe querida, você está mesmo viva? Nunca esperei vê-la pessoalmente."
(pgs. 346-347)
LINDO......................