Procyon 20/09/2022
A Guerra dos Mundos ? Resenha
?No entanto, através do abismo do espaço, mentes que em relação à nossa são como a nossa em relação às dos animais que perecem, intelectos vastos, frios e insensíveis, lançavam sobre este planeta olhares invejosos e, lenta e inexoravelmente, traçavam planos contra nós.? (p. 37)
É curioso que o melhor livro de H.G. Wells seja o mais ?espalhafatoso?, servindo como base para adaptações cinematográficas, alinhado, por tanto com o cinema blockbuster. Wells, contudo, é acima de tudo um autor que transborda criatividade artística, um criador de utopias e um crítico da modernidade. Se em ?A Máquina do Tempo? (1895) e ?O Homem Invisível? (1897) ele já conciliava um elemento fantástico com as questões sociais do século XX, o seu ?A Guerra dos Mundos? (1898) atinge o grau máximo de excelência na medida em que abarca uma noção cada vez mais de historicidade no tema, incorporando, diferente das narrativas supracitadas, um ?relato visual? dos eventos, apresentando um narrador ? em primeira pessoa ? diretamente relacionado com a ação da trama e que conta uma verossímil descrição literária dela.
A ação se passa nos arredores de Londres, onde ocorre uma belicosa invasão à Terra por marcianos inteligentes, dotados de poderosos raios carbonizadores e máquinas assassinas (tripods), semelhantes a depósitos de água sobre tripés. É a primeira história de invasão e o primeiro retrato do ser alienígena como a encarnação do Outro. Wells, ao incorporar uma força quase mitológica e poética numa trama repleta de destruição, consegue captar um sentimento de repulsa ? de modo que há descrições detalhadas da anatomia dos marcianos e de seus movimentos grotescos. Apesar de transbordar de metáforas sobre a condição inferior da humanidade frente a uma civilização tecnologicamente superior, o livro pode ser lido como uma forte crítica ao colonialismo, por onde Wells, ao elevar esses seres alienígenas ao aspecto grotesco, retrata a opressão sofrida por povos inferiorizados, escravizados e forçados a servir colonos e exploradores que os rebaixaram a animais.
?Será que somos realmente apóstolos da tolerância para nos queixarmos, quando os marcianos nos combateram com a mesma mentalidade?? (p.39)
Assim como nos dois romances anteriores, este segue o recurso recorrente do autor em situar a narrativa em uma cidade/região real, compondo lugares e pessoas comuns com situações ou personagens absurdas. Wells opta por não nomeá-las, de maneira que essas personagens são identificadas, na maior parte, pelas suas atribuições sociais (o artilheiro, o padra, a esposa, etc.), o que de certa forma sobrepõe seu caráter fantástico na medida em que o romance atinge o tom de parábola, universal e atemporal. O realismo, portanto, já deslocado pelo autor e uma vez desnecessário, faz com que Wells não precise se aprofundar nessas personas que compõem a trama. O que importa, no fim, é sia representação magnânima da dissolução social ao representar a angústia do fim de um século (do colonialismo).
Em última instância, o livro marca uma importante fase da ficção científica ? Wells porventura cita revistas como a Nature para imprimir veracidade a suas informações ?, alavancando futuras representações imagéticas que também impactaram a modernidade. Três anos antes de lançar ?Cidadão Kane? (Citizen Kane, 1941) ? filme que mudaria a história do cinema e sedimentaria aspectos da linguagem de sua arte ?, Orson Welles, o ?quase xará? de Wells, causaria histeria generalizada na costa leste dos Estados Unidos ao interromper a programação musical diária da CBS para dramatizar uma invasão de marcianos.
?Talvez eu seja um homem de temperamento raro. Não sei até que ponto minha experiência é comum. Às vezes sinto-me estranhamente desligado de mim e do mundo ao meu redor; parece que assisto a tudo de fora, de um lugar incrivelmente remoto, fora do tempo, fora do espaço, fora da tensão e da tragédia que nos cercam.? (p. 77)