danilo_barbosa 01/12/2023Antes do berço...Na história da literatura mundial, as narrativas têm por protagonismo a mais variável e inusitada gama de personagens. Alguns despertam em nós a empatia automática, outras o estranhamento, mas um fato é que poucas deixam os leitores indiferentes, já que traçam em sua trajetória situações e sentimentos humanos, sejam contidos ou exacerbados.
E quando pensamos que ninguém pode nos surpreender – já que desde datas mais remotas compartilhamos palavras com insetos asquerosos ou a própria Morte –, Ian McEwan vem e nos surpreende com algo inusitado: um feto, uma criança prestes a nascer em meio a uma intriga de crime e vingança, dona de um sarcasmo e dramaticidade que falta, ocasionalmente, até mesmo aos adultos.
Com referências claras em Hamlet, “Enclausurado” tem como foco uma criança, dentro da barriga da mãe nos meses finais de gravidez, compartilhando com ela os planos de matar o pai em cumplicidade com o amante, irmão do marido. Tudo por causa de um imóvel, onde ela mora, que pode valer milhões. Mas como o próprio nome diz, a barriga materna, o berço original, lhe inibe de tomar quaisquer atitudes, tornando essa relação um misto de amor e ódio.
Ao colocar em destaque um personagem tão inusitado, o escritor inglês extrapola, alfineta, viceja a imaginação tirando dele limites. O humor é refinado e fugaz, como em determinado momento pensa com ojeriza no sêmen do amante maculando o ambiente onde mora, que em nada ligamos a uma vida pré-nascida, mas que nos divertimos tanto com os apontamentos que tudo passa a ser válido.
Mas a tensão do crime e da sombra advinda dos pensamentos humanos, características tão marcantes da obra do autor, estão lá presentes. E quanto mais nos aproximamos do final, mas nos sentimos aprisionados e atados, como a própria criança, levados até as últimas consequências.