spoiler visualizarLinda 31/03/2020
A Biologia do feto
Trata-se do relato de um feto muito observador do mundo que o cerca. Nada escapa à esse narrador curioso sobre o próprio destino. De forma bem humorada, conta-nos a interação biológica com a mãe, descrevendo detalhes sobre a anatomia e fisiologia da gravidez, da concepção ao parto: "É só em mim que meus pais se unem, doce, acremente, ao longo das estruturas separadas de açúcar e fosfato, a receita para a essência de quem eu sou" (p. 18 - faz referência à estrutura do DNA e pode passar desapercebida pelos leitores não acostumados à biologia). Aponta os conflitos de emoções em relação aos pais: "não é o amor dela que está faltando. É o meu. É meu ressentimento que está nos separando" (p.41) e suas percepções a partir do corpo materno diante dos diferentes estímulos - desde os de origem emocional "o corpo é incapaz de mentir, mas a mente é outro país" (p.48), da dor, que gerou a consciência e invenção do eu e da poesia (p.53) e do vinho, apreciado e degustado pela mãe e decantado para a placenta, para deleite do narrador: "um pinot noir é como uma carícia calmante de mãe. Ah, estar vivo quando existe uma uva como essa! Uma flor, um buquê de paz e razão" (p.59). Escrito em 2016, o feto narrador é bem informado, graças aos pod casts ouviods pela mãe, sobre o terrorismo, sobretudo na Inglaterra (a história se passa em Londres) e nos brinda com alguns dados históricos que nos fazem recorrer ao google para relembrar ou aprender. Outro aspecto que chamou a atenção durante a leitura é a descrição do narrador sobre o ato sexual do ponto de vista do feto e sua preferência pelo sexo oral, sob o argumento de não correr o risco de ter o crânio perfurado e contaminado pelo sêmen. Ainda, e não menos importante, reflete sobre o sexo binário e a anunciação após o nascimento - "Ninguém exclama: É uma pessoa! E vez disso: É uma menina, É um menino. Rosa ou azul.... dois sexos apenas (não segurei a risadinha de leitora brasileira impactada pela fala recente de nossa Ministra do Estado da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos). Fiquei desapontado" (p.148 - até o feto inglês questiona a Ministra). Filosófico, o narrador reflete, além das questões de gênero, as questões políticas e sociais da Europa que "vacila entre a piedade e o medo, entre auxiliar e repelir. Comovida e gentil numa semana, de coração duro e bastante moderada na seguinte, ela quer ajudar, mas não repartir ou perder o que tem (p. 191). E nesse conflito de emoções enclausuradas pela placenta, decide com um dedo indicador, tirar a mãe da moldura (p. 193) e vir à luz, atravessando o túnel o qual viu muitas vezes ser atravessado em direção oposta. Agora, ele é "um imponente navio de genes, enobrecido pelo avanço sem pressa, transportando minha carga de informações antigas (os genes, nota minha), ciente de não ser páreo para nenhum caralho ocasional (p.197).