Luciano Otaciano 12/03/2021
Livro maravilhoso!
Se existissem contos de fadas na cultura negra, com toda a certeza "AIMÓ Uma viagem pelo mundo dos Orixás" seria um deles. Essa é a proposta de "AIMÓ", escrito por Reginaldo Prandi: trazer com leveza e dinamismo o entendimento do mundo dos Orixás, e quebrar o tabu construído em volta da belíssima mitologia Iorubá. Um dos mais incríveis recursos utilizados pelo escritor nessa "contação de histórias" foi a utilização dos 'Odus'. Segundo a tradição Iorubá, tudo que acontece em nossas vidas é uma repetição do que já aconteceu um dia em histórias vividas pelos Orixás. Os Odus são os capítulos que identificam cada uma dessas histórias; no jogo de Búzios ou no Oráculo de Ifá, os Odus são representados. E cada Odu, dentre um total de 16, reúne um grupo de Mitos e Orixás relacionados. No final do livro, encontramos explicações mais detalhadas sobre esse tema. E, não por acaso, a história de "AIMÓ" possui 16 capítulos, cada um contando mitos de Orixás correspondentes aos seus Odus.
E para começar, o primeiro capítulo, o primeiro Odu, "A menina Esquecida", introduz a história da pequena Aimó. Perdida no Orum, o mundo dos Espíritos, Aimó descobre que não é capaz de voltar para o mundo dos Vivos, a Terra, o Aiê, porque foi esquecida. Não existem memórias suas no mundo dos vivos para que ela possa retornar. E para sair dessa prisão, ela precisará da ajuda dos Orixás.
Aimó, depois de encontrar Olorum - o Orixá primordial, que criou os outros Orixás -, Ifá - o Orixá dos Oráculos, contador de histórias - e Exu - o Orixá mensageiro, da transformação - descobre que, em vida, foi levada de sua terra natal, num país africano, para o Brasil como escrava, após toda sua família ser morta. O tema escravidão é pincelado por diversas vezes no livro, mencionando seus horrores e o sofrimento da população negra africana sequestrada, escravizada e enviada para o Brasil dentro dos navios negreiros. Essa sendo uma forma de nos lembrar como o nosso país foi construído e como foi a vida dos nossos antepassados - ainda hoje, mais de 50% da população brasileira é declaradamente negra, ou seja, descendente daquele povo.
O costume Iorubá atribuía a cada família um Orixá, baseado na sua ascendência, já que os Orixás representam deuses que um dia já foram vivos nesta Terra. Então o Orixá regente de uma pessoa, aquele que o representa e o protege, normalmente seria passado hereditariamente. Mas Aimó não sabe seu nome de vida, nem de que familia veio, então ela não tem um Orixá regente. Aqui, vemos uma referência ao como o candomblé e a umbanda se estabeleceu no Brasil, onde não era possível descobrir a ascendência das famílias, então os praticantes da religião recebiam a ajuda de mães e pais de santo para descobrir seu Orixá regente. Para voltar à Terra, Aimó precisará de um Orixá regente - no seu caso específico, uma Orixá mulher, uma Aiabá. Não tenho certeza do motivo do autor pela escolha de uma Orixá Feminina, mas em vários momentos Aimó pede por sua mãe, o que indica uma decisão de afinidade, de preferência, como se a garota fosse escolher um modelo materno para se inspirar, de qualquer forma. E a jornada de Aimó se inicia.
Com a ajuda de Ifá e Exu, a garota viaja pelo mundo dos Espíritos para conhecer os mitos dos Orixás e escolher sua nova mãe. Durante sua viagem, entedemos também o sistema de oferendas que se costuma fazer para cada Orixá; também entendemos que, diferente de muitos deuses e deusas de diversas religiões, estes foram humanos um dia, e sua características, personalidades, qualidades e defeitos permanecem. Os Orixás não são seres perfeitos e inatingíveis, são seres muitos semelhantes a nós, porém dotados de forças e poderes diferenciados, recebidos por mérito para ajudar a humanidade.
A primeira Aiabá conhecida por Aimó é Oxum, Orixá do amor, da vaidade e da fertilidade, quando ela presencia a história de como ela trouxe Ogum de volta para o seu povo, atraindo-o de seu exílio com sua beleza. A segunda foi Euá, senhora dos segredos e das fontes, e Aimó conhece a Orixá através do conto onde ela engana a morte para salvar Orunmilá, outro nome para Ifá, e engravida dos gêmeos Ibeji.
Em cada mito contado, nos deparamos com caracteristicas bastante humanas, como a luxúria. Não existem reprimendas a essas questões, a sexualidade é tratada com extrema naturalidade, como de fato deveria ser.
Aimó prossegue com Ifá e Exu ao seu lado, assistindo a cada história contada como se estivesse acontecendo diante de si. E assim ela conhece Iansã, a Orixá considerada hoje protetora do feminismo, deusa do vento, do raio, das tempestades, aquela que carrega os espíritos para o outro lado, para renascer.
Conhecendo a história Iansã e Xangô, no entanto, Aimó acaba passando por um situação inusitada, e com sua mania de acender tudo muito vivamente em sua cabeça, acaba por imaginar que causa um incêndio no reino de Xangô. A garota fica muito abalada e adoece.
Ifá e Exu levam a garota para Iemanjá, onde pela primeira vez Aimó interage como uma das Aiabás, a Orixá provavelmente mais popular no Brasil, deusa do mar, da maternidade e cuidadora do equilíbrio emocional, considerada mãe dos Orixás e de toda a humanidade. Lá eles contam com a ajuda também de Ossaim.
Finalmente curada, a viagem prossegue, sendo que Aimó fica cada vez mais indecisa diante de tantas Aiabás incríveis e de personagens distintas. Ela conhece ainda mitos sobre Obá, a Orixá dos serviços domésticos, e Nanã, deusa da lama, senhora da sabedoria, além de diversos outros Orixás masculinos e também os sem sexo, ou que podem ser homem e mulher ao mesmo tempo.
Chegada a data marcada, com todos os Orixás reunidos, Aimó deve fazer sua escolha para voltar à vida na Terra. A garota, mais inteligente e entedida, depois de tudo que ouviu e presenciou finalmente faz a sua esperada passagem para o Aiê.
Após a leitura, uma nota do autor finaliza explicações, e os apêndices de glossário de termos em Iorubá, nome dos Orixás principais e esquema do Oráculo fecham com chave de ouro. "AIMÓ" é um belíssimo resgate cultural afrobrasileiro, e possui grande potencial para iniciar pessoas à cultura Iorubá e do Candomblé, desmistificando preconceitos e imagens negativas, e transformando tudo isso num incrível "conto de Orixás". Recomendo este livro para todos leitores, inclusive para os que não leem frequentemente contos. É um livro enriquecedor. Espero que tenham curtido a resenha. Até a próxima!