spoiler visualizarllammer 17/03/2024
Lá vem Tolstoi e, com ele, contradições. Em primeiro lugar, o livro é maravilhosamente bem escrito, com metáforas ótimas e uma narrativa muito envolvente - nenhuma surpresa até aí. Em resumo, Confissão diz respeito ao momento da vida em que Tolstoi se depara com o abismo (em termos nietzschianos) e começa a questionar sua fé não só na sua própria espiritualidade, mas também na razão.
Apesar de limitado pelo contexto do positivismo em seu auge, por sua classe e costumes (aristocracia russa cristã-ortodoxa), o impacto de enfrentar a finitude não deixa de ser um processo sofrido e doloroso - como há de ser para todo mundo eventualmente.
O problema é que, após exprimir com excelência o desespero claustrofóbico da inevitabilidade da morte, a inconformidade de Tolstoi não consegue ultrapassar a sua própria arrogância. Desmerecendo as respostas que o racionalismo lhe dá, dialogando com Schopenhauer (a vida não tem sentido), ele se esforça para se reconectar com o cristianismo (!), alegando que é a crença em deus que dá sentido à vida. Essa constatação se deu através da observação do ?povo simples?, reduzindo a massa camponesa a um ponto de vista único, simplório e alheio às grandes questões filosóficas. Essa mesma massa camponesa de conformada não tinha nada, como as próximas décadas de turbulência política e revolução vão comprovar.
O que mais incomoda é o autor não aceitar que a resposta ?nenhum? (em relação a qual o sentido da vida) seja uma resposta válida. É incômoda? Sim. Definitiva? Precisamente. Então, ele a rejeita, alegando que a razão ?não lhe deu respostas?, quando, na verdade, ele simplesmente não gostou da resposta. Em vez de modificar a pergunta para seguir o grande coelho branco filosófico, ele dá dois passos para trás e se força a frequentar novamente a igreja ortodoxa e tomar parte em seus ritos, apesar de todas as contradições que ele não desconhece, mas consegue ignorar (como ele acusa àqueles de epicuristas de fazerem em relação a aceitar o absurdo da existência).
Enfim, o livro é interessante do ponto de vista de ser pré-niilista e já trazer uma ilustração tão nítida do sofrimento que acompanha essa tomada de consciência sobre o caráter definitivo da finitude e, porque não, da infinitude. Entretanto, eu vi que a editora se chama ?Mundo Cristão?, o que me deixou desconfiada. Fui atrás do site e vi uma entrevista da época do lançamento dessa edição (2017) e ali me confirmou a suspeita de que esse livro é instrumentalizado também como uma justificativa para aceitar a palavra do cristianismo na atribuição do sentido à vida. Daí, não tem como defender.