Lucas 05/10/2020
Questionamentos universais + mente brilhante e perturbada: Receita para um livro sensível e impactante
Qual o sentido da vida? O que nos aguarda quando ela se encerrar? O que é a vida? O que é viver? Por quanto tempo nossa vida seguirá repercutindo nas gerações futuras? Poucos dogmas são tão batidos e misteriosos do que estes, e Uma Confissão (1879), obra de caráter não-ficcional do russo Liev Tolstói (1828-1910), não os soluciona de forma decisiva: pelo contrário, expande a aprofunda estes questionamentos que acompanham e acompanharão a humanidade para sempre.
Uma Confissão é, antes de um livro filosófico, um longo "grito" oriundo de um peito esgotado, que se encontra numa atmosfera sem perspectiva. Não que Tolstói tenha passado necessidades financeiras; dos grandes escritores russos da sua geração, ele era possivelmente o único com boas condições financeiras, ou pelo menos um dos únicos capaz de sobreviver com seus escritos. Sempre foi muito reverenciado, especialmente pelas suas obras-primas (o indescritível e monumental Guerra Paz, lançado de forma integral em 1869 e o profundo Anna Kariênina, de 1877) e tinha uma esposa dedicada e uma vida confortável quando ele escreve Uma Confissão em 1879 (que num primeiro momento não chegou a ser efetivamente publicado, apenas seus manuscritos eram copiados e compartilhados. A publicação formal veio apenas em 1905).
A obra não é uma das mais importantes da carreira de Tolstói, mas ela marca uma mudança brusca de perspectiva, que se reflete em grandes livros que o autor lança na parte final da sua vida, como A Morte de Ivan Ilitch (1886) e Ressureição (1899). Uma Confissão, sinteticamente, narra por meio de 16 capítulos curtos e menos de 130 páginas na boa edição da editora Mundo Cristão (traduzida por Rubens Figueiredo) uma intensa crise depressiva de seu narrador e uma posterior "conversão" a um ideal próprio de entendimento da vida. Aliás, estas duas vertentes narrativas são simetricamente nítidas: enquanto praticamente toda a primeira metade da obra discorre sob um tom sombrio, de desesperança, ideias suicidas e uma filosofia negativa que por vezes irrita o leitor, a segunda metade de Uma Confissão é edificante.
Liev Tolstói, dada a sua condição, era um intelectual, um sábio, e, por isso mesmo, um cético incorrigível. Seu ceticismo exacerbado o leva a uma condição doentia, onde ele passa a viver em torno das questões fundamentais que buscam o sentido da vida. E em meio a muitas andanças, literais e literárias, ele conclui que viver é inútil. Esta conclusão é simbolizada por uma parábola muito ilustrativa, que não será revelada aqui para que não seja comprometido o espanto que causa. Desolado, o desespero de Tolstói é pintado em cores vivas e opressivas. Por mais que suas descrenças e lamúrias irritem o leitor, elas são frutos de uma mente doente: seu ceticismo e posterior pessimismo muito tem relação com talvez o maior mal do século XXI: a depressão, que é um mal por si só e conduz a tantos outros males mais "palpáveis" aos olhos externos.
O tom depressivo, contudo, cede passagem a uma abordagem mais construtiva na segunda metade de Uma Confissão. Tolstói não oferece respostas efetivas ao dilema do sentido da vida, lógico, mas sua teoria central, que também não será aqui revelada, é válida sob o ponto de vista histórico e humano, simbolizada por outra parábola que, diferente da que serve como símbolo da inutilidade da vida, alegoriza a busca pelo sentido da nossa existência por aqui de uma forma mais encorajadora.
Na mistura dessas duas vertentes, Tolstói oferece um texto que contribui de forma relevante ao papel da fé universal na humanidade. A Igreja Ortodoxa Russa, que acabou excomungando-o em 1899 é o alvo principal das críticas do escritor ao que as igrejas de uma forma geral entendem como fé. O apego aos chamados ícones (imagens), a influência de instituições externas à Igreja (como a política, ou no caso da época, os czares russos, por exemplo) e que possuem ideais conflitantes com o que a Igreja deve (ria) ensinar, entre outros aspectos, associados a um distanciamento da Bíblia e dos seus ensinamentos são questões debatidas por Tolstói e de validade eterna: são nuances que ainda hoje permanecem na Igreja de uma forma universal, independente de religião ou credo (muitas destas nuances foram expandidas, inclusive, a questões de fidelidade comercial e por aí vai). Há um desvirtuamento da fé que, se Tolstói condenou asperamente na época, não se pode imaginar o que faria diante do quadro atual.
Não é apenas a Igreja Ortodoxa de seu país, todavia, que recebe um julgamento duro e justo de sua parte. De forma sutil, Tolstói acaba criticando toda a sua classe contemporânea de escritores (e olha que ele estava falando daquilo que se convencionou a chamar "Era de Ouro" da literatura russa...), preocupados, como ele mesmo, com o reconhecimento e o status social que um grande escritor acabava adquirindo na alta sociedade. De forma direta, o raciocínio de Tolstói era simples: de nada adianta obras monumentais, de grande riqueza literária se elas são (como eram) inúteis na busca pelo sentido da vida, se são incapazes de responder a estas perguntas que deveriam ser a razão de existir desses ditos pensadores e mentes superiores que eram os escritores de uma forma geral. Prova disso é a renegação e até arrependimento com que ele chegou a tratar nesta época Guerra e Paz e Anna Kariêninia, como a trajetória de sua vida dá a entender. Talvez por isso mesmo seu olhar questionador acabou direcionando-se à outra face desse espectro social, a classe mais humilde, como os mujiques. E este novo enfoque foi o ponto de partida para as conclusões relatadas na obra e que possuem um sentido considerável, apesar das limitações que trazem consigo.
Uma Confissão é o que seu título diz: o relato de uma das grandes personalidades literárias do século XIX e a sua percepção de sentido da vida. Mesmo que Tolstói não responda a questões centrais derivadas deste seu entendimento ou que não traga nada de inovador para um leitor mais filosófico, sua leitura é válida por trazer uma infinidade de questionamentos místicos que ainda hoje são válidos e por oferecer uma perspectiva própria sobre estas dúvidas tão fundamentais e universais.