Na Nossa Estante 05/03/2017
O protegido
O que faz um livro de fantasia se tornar épico? O herói corajoso e abnegado que coloca a vida de outros a frente da sua própria? Batalhas épicas contra os inimigos? A união de diferentes povos contra um inimigo comum?
É verdade que em O Protegido, primeiro volume do Ciclo das Trevas, escrito por Peter V Brett, publicado no Brasil pela Darkside Books, podemos encontrar tudo isso, mas me surpreendi durante a leitura ao perceber que o autor não se limitou a contar a jornada apenas daquele herói que enfrenta os perigos de frente, mas também daqueles heróis que agem confortando, curando ou trazendo um alento para as pessoas. E mais importante, dando a importância que essas pessoas merecem.
Nesta jornada vamos acompanhar a trajetória de três personagens desde a infância até a fase adulta. Arlen, natural do Riacho de Tibbet, que com apenas 11 anos já sabe desenhar proteções melhor do que muitos aprendizes da função de protetor e mensageiros experientes, é filho de fazendeiros. Leesha, natural da Clareira do Lenhador, filha de um fabricante de papel e uma dona de casa, que sonha em se casar com seu prometido. E por último, mas não menos importante, o mais jovem dos três, Rojer, natural de Pontefluente, filho de estalajadeiros, que começa sua jornada com apenas 3 anos.
Teoricamente, a vida dos três já está traçada, os filhos seguem a profissão dos pais com frequência nestes pequenos vilarejos. Porém, a vida destas crianças não tem nada de comum, pois elas vivem em um mundo assolado por terraítas, seres equivalentes a demônios, que se dividem em várias espécies, tais como, pedra, fogo, vento, água, areia e madeira. Estes demônios têm como prato favorito a carne humana, e todos os dias após o pôr do sol, se erguem da terra para se alimentar de pessoas desprotegidas. A única forma de se proteger é colocando proteções em suas construções ou no terreno, mas a menor falha é capaz de causar grandes tragédias, e com isso a humanidade se torna refém do medo de serem consumidos por estes seres misteriosos.
Há alguns séculos surgiu um Salvador, que conseguiu não apenas se defender, mas atacar os demônios através da magia das proteções e liderar exércitos de homens. Após levar a considerada extinção dos terraítas, a humanidade deixa de ter um inimigo em comum e passa a lutar entre si pelo poder. O Salvador foi então convocado a liderar exércitos nesta guerra, porém se recusou e preferiu desaparecer. Após um longo período de batalhas, os homens se espalharam pela terra e deu-se início um período conhecido como Era da Ciência, em que o principal erro foi deixar a magia de lado.
Três mil anos se passaram sem que um terraíta fosse avistado, e o homem chegou ao ponto de duvidar que esses seres realmente existiram. No entanto, como nem tudo é tão bom o quanto parece, eles apenas estavam juntando forças para se reerguerem mais fortes do que nunca, e como os seres humanos achavam estar livres dos demônios, a maior parte do conhecimento sobre proteção se perdeu, e o máximo que o homem consegue mais de trezentos anos Depois do Retorno é se trancar em suas casas e torcer para que as proteções aguentem durante a noite, aguardando o dia em que um Salvador irá se levantar e liderar novamente os humanos contra o inimigo.
A mitologia criada pelo autor se assemelha muito com a teologia judaico-cristã-muçulmana, não somente nesta questão do Messias, o Salvador, mas também no que se refere ao papel do homem e da mulher na sociedade, e na culpa da humanidade por seu sofrimento. Os sacerdotes deixam claro que a fé deles acredita que os terraítas foram enviados pelo Criador, por conta dos pecados da humanidade. O autor não nos poupa de personagens e situações em que o machismo se mostra de forma intensa, principalmente enquanto nos conta a história de Leesha.
No começo eu estranhei um pouco essa questão de meninas de 13 anos grávidas, sendo tratada como algo comum, mas então entendi com o que o autor estava trabalhando, alta taxa de mortalidade, seja pelos ataques dos terraítas ou por doenças, e baixa taxa de natalidade, e vi que poderia muito bem acontecer isso mesmo, os jovens serem incentivados a se casarem e terem filhos bem cedo.
Diversos personagens me marcaram durante a leitura, mas preciso destacar Bruna, ervanária da Clareira do Lenhador e professora de Leesha. Além de garantir momentos hilários, a personagem nos faz refletir sobre a forma como julgamos o próximo e como deixamos certos conceitos morais, mas principalmente religiosos e patriarcais ditarem os rumos de nossa sexualidade, principalmente a feminina. O próprio Arlen é uma personagem que se mostra feminista em diversas situações, especialmente durante sua estadia em Krasia, o que me fez gostar dele um pouco mais.
A construção de mundo é perfeita, descritiva sem ser cansativa, e os diálogos muito bem construídos. Apesar de estranhar nos primeiros capítulos a forma como as crianças falam, tive de abrir a minha mente e levar em consideração que apesar da pouca idade, essas pequenas pessoas já viram muito coisa e são criados para se tornar independentes muito cedo, então comecei a entender o porquê de apesar de serem crianças, não serem personagens infantis.
Nossos protagonistas são assolados quando seus lares sofrem ataques dos demônios, muitas perdas, sejam das vidas de pessoas queridas ou da inocência com relação aos que os cercam, irão ajudar a traçar seus caminhos. Arlen deixa o lar e o futuro como fazendeiro para se tornar aprendiz de mensageiro, Leesha irá se tornar aprendiz de ervanária, e Rojer, aprendiz de menestrel. Essas três profissões são de extrema importância neste mundo, pois a única forma de comunicação é através dos mensageiros, que dormem muitas vezes ao ar livre durante a noite para chegar a cidades distantes e levar mensagens e fazer comércio de alimentos e outros produtos, as ervanárias são curandeiras e parteiras, e os menestréis, trazem um pouco de alegria e distração dos problemas, pois são artistas que contam histórias, tocam músicas e divertem as pessoas de diversas formas.
Quando o caminho dos três finalmente se cruza, foi no momento de maior tristeza para mim no livro. Chorei e tive que tomar um tempo para retomar a leitura, pois como já acontece na parte final da história deste primeiro volume, eu já estava me sentindo muito próxima das personagens. Neste momento também começa a ser traçado o novo caminho que se mostra para os três, que parece já estar claro, mas a reunião de suas forças traz novas possibilidades e novas formas de lutar contra os terraítas e ajudar realmente a humanidade. É bacana ver que além do sofrimento, o grupo passa a compartilhar a fé em derrotar estes seres malignos, não confiando em um Salvador, mas na força da humanidade.
O Protegido foi mais que uma simples leitura para mim, foi uma experiência, o tipo de livro que mais me motiva a entender as entrelinhas e buscar realmente a entender as ações e palavras das personagens, mas também consegue entreter de forma mais do que satisfatória. Se a história virar filme, torço para ser uma adaptação bem fiel e bem produzida, pois este livro merece.
site: http://www.oquetemnanossaestante.com.br/2017/03/o-protegido-resenha-literaria.html