Julia 20/01/2024
Fantástico, criativo e potente
Em Os Despossuídos, Ursula Le Guin pega um gênero frequentemente marcado por conservadorismos e o vira do avesso. E faz isso na década de 1970!
Aqui, os temas como a vida em outros planetas e as possibilidades de manipulação do espaço-tempo são utilizados como suporte para discussões igualmente instigantes sobre nossa sociabilidade.
Os dois planetas nos quais se passa a história, Urrás e Anarres, são, de fato, opostos. No primeiro, se vive a miséria capitalista, enquanto no segundo, que foi povoado por revolucionários urrastis, construiu-se uma experiência próxima ao comunismo. Shevek, o protagonista, nasceu em Anarres e vai a Urrás, sendo o primeiro anarresti a deixar seu planeta.
Gosto de como Anarres não é retratada como uma sociedade perfeita, mas como uma experiência em construção, sempre ameaçada pela burocratização, enquanto os problemas de Urrás vão sendo gradualmente descortinados ao longo dos capítulos da obra. A crítica Anarres é contundente em vários momentos, mas não recai na negação da experiência anarresti ou na exaltação a Urrás.
Outro aspecto fascinante da escrita de Le Guin é a centralidade que ela dá à linguagem. Se a língua é construída social e culturalmente, é de se esperar que pessoas socializadas em modos de produção distintos também se expressem diferentemente. E isso é evidenciado na obra. Em Anarres, ninguém possui nada, e até mesmo a propriedade individual é desencorajada. Por isso, pronomes possessivos são evitados no idioma anarresti, o právico.
Além disso, os anarrestis repreendem fortemente aqueles que ?egoizam?, isto é, os que agem de forma individualista, em detrimento do interesse comunitário. ?Egoizar? é o neologismo que representa o comportamento mais repreensível naquele planeta.
Finalmente, a abordagem sobre gênero e sexualidade também foi, para mim, um ponto forte da leitura. Apesar de A Mão Esquerda da Escuridão levar o crédito por tratar disso de forma central, é em Os Despossuídos que Le Guin consegue elevar o patamar da discussão, abordando-a com mais maturidade.
Além de tudo, os enredos da vida pessoal de Shevek e seus amigos também me instigaram e me conectaram à leitura, principalmente pela ternura com a qual a autora descreve os relacionamentos do protagonista. Talvez a obra de ficção científica mais crítica e humanista que já li. E além de tudo, é potente, por permitir que quem lê consiga imaginar e vislumbrar outras formas de existir, de ocupar e de explorar o Universo.