André 07/09/2020Ser todo é ser parte; a verdadeira viagem é a volta.É difícil começar uma resenha de um livro tão magnífico como esse, que fala sobre tantas coisas, que imagina formas de se viver tão verdadeiras e que nos desafia constantemente a questionar e refletir sobre nossas noções e ideias.
Se tivesse que resumir, diria que é uma obra anarquista sobre destruir muros, próprios e alheios. Muros físicos, mentais, sociais e filosóficos.
É interessante como a autora concebe a sociedade em Anarres, pois não cria uma sociedade utópica e perfeita. Ela, como anarquista, sabe que não há um caminho fácil para uma revolução, não é fácil manter a existência dessa comunidade. Justamente por isso é tão gratificante para mim, também como anarquista, ver o que a autora imaginou e funcionamento dessa civilização.
Um dos muros a serem derrubados está em Anarres. Apesar da filosofia de Odo (idealizadora dos princípios de Anarres) não ter criado leis, percebe-se que em alguns momentos a sociedade acaba criando meios coercitivos, limitando a liberdade individual de escolha de cada indivíduo. É fundamental essa reflexão, pois como dito, não há sociedade perfeita.
No próprio livro há menção de que a revolução deve ser constante, apresenta versos sobre a necessidade de vigilância constante para que não haja a derrocada dos ideias anarquistas naquela sociedade. E, de fato, é uma dificuldade real do estabelecimento de uma sociedade revolucionária não cair em um engessamento, ou na produção de micro-fascismos (como diz Deleuze).
E outro muro que Anarres precisar derrubar é o do seu "passado". Depois da revolução e a saída de Urras, os anarristas não voltaram mais ao seu planeta de origem e mal mantém contato com Urras. Por isso, Shevek vai até Urras para tentar fazer essa conexão. Ainda que a execução dele tenha sido mal sucedida, é uma necessidade que se espalhe a revolução para todos. O verdadeiro sentimento de solidariedade não pode ser "egoizado" para um grupo apenas, a revolução de um país só é um desrespeito a todos aqueles que sofrem.
Além de nos fazer refletir sobre esses dois muros, o livro nos faz refletir sobre individualidade e diferenças. A individualidade deve ser preservada, porque é potencializando as diferenças que se consegue alcançar os melhores resultados sociais. O que se deve ser evitado e combatido é o egoísmo, justamente o conceito de liberdade liberal-burguesa que vemos tão claramente hoje em dia, com pessoas se recusando a usar máscaras, desrespeitando medidas sanitárias, movimentos antivacinas, alegando ser uma escolha individual. A liberdade e individualidade não podem ser egoístas, mesquinhas, mas sim se conectando com a solidariedade, na busca do que é melhor para todos.
Já em Urras, a autora critica pesadamente o capitalismo e mostra como ele é o principal muro a ser destruído. Se Anarres é um sonho anarquista, a nação de A-Io é o sonho capitalista. É,verdadeiramente, o ideal de um mundo para os neoliberais, com luxo e fartura... mas só para alguns. Um luxo e fartura bancado pela exploração da grande parte da população, mantendo-os na miséria e reprimindo violentamente qualquer descontentamento. Acho nem preciso dizer o quanto isso é atual.
Além desses pontos, o livro aborda várias outras questões, como misoginia, racismo, relacionamentos, amor, solidão, eu etc. Também tem vários pontos que eu pensei durante a leitura e que esqueci enquanto escrevo a resenha. Mas sinceramente, para falar de tudo que o livro aborda e nos faz refletir, precisaria escrever outro livro.
Enfim, Ursula Le Guin é uma escritora fantástica, faltam adjetivos suficientes para qualificar a obra dela. É um dos melhores livros que já li e que fortaleceu meu anarquismo.