Thales 12/03/2021
Ave, palavra!
É assim que a professora Maria Barbosa encerra o posfácio da edição, e o faz após comparar a prosa de Conceição às de Clarice, Graciliano e Guimarães Rosa. Tá pouco?
E é isso. A caneta de Conceição Evaristo tem a potência de um estilete, que nos mutila pouco a pouco. O bárbaro cenário social apresentado na obra é duro sobretudo por ser profundamente real, e é impossível não nos comevermos diante da mais crua e objetiva realidade dos negros que enfrentavam e ainda enfrentam o jugo dos brancos seja na roça, seja na cidade. A cena do deslumbre de Luandi ao descobrir que existiam soldados negros é a tórrida caricatura dessa desigualdade.
E a autora não se furta em lançar mão de imagens, em muito, doentias para registrar a pútrida condição de vidas de seus personagens. O filho do senhor mijando na boca de seu pajem, o pai que lança um bebê choroso pela janela, o avô que assina a família à foice. E ela não faz isso buscando o choque pelo choque como num livro de horror; o faz porque são retratos possíveis, é o absurdo palpável de uma sociedade doente.
E além de tudo Ponciá é uma protagonista fenomenal. A mulher preta que sai de seu quilombo para a cidade não só para "mudar de vida", recuperando o chavão antropológico, mas para levar sua família pra civilidade. Não é a busca por uma melhor condição material, é a busca por viver a sociedade, participar do jogo, ser alguém - o que nenhum dos Vicêncio, sobrenome herdado dos antigos senhores, o eram; pelo menos era assim que Ponciá enxergava os habitantes forros pero no mucho de seu povoado. Ver, ano após ano, a insistência em reunir sua família ao mesmo tempo que sua mente vai virando pudim é fascinante, tal como, no inverso do jogo, a saga nada engendrada de mãe e irmão para fazer o mesmo.
É muita coisa junta acontecendo em pouco mais de cem páginas. Maestria define.
A nota seria sem dúvida maior não fosse a revisão que deixou passar alguns erros, manchando a belíssima edição da Pallas. Destaque para a introdução escrita pela própria Conceição, em que conta que ela e Ponciá se confundem tanto que por vezes a chamam pelo nome de sua personagem na rua ou em eventos.
Leiam Conceição Evaristo, pelo bem de vocês e do país.