Lia 25/04/2022
Realista, agridoce e marcante.
É totalmente compreensível a aclamação literária de Conceição Evaristo. Uma autora de renome, negra, que parece abrir nossos peitos através de apunhaladas suaves a cada página realmente merece toda esta atenção.
Em seu livro "Ponciá Vicêncio", é narrada a jornada da protagonista de mesmo nome e, mais tarde, sua mãe e seu irmão mais novo, conforme as andanças da vida separam suas histórias.
A família, pobre e analfabeta, reflexo direto da escravidão sofrida por seus antepassados e, de certa forma, ainda refletida em suas vidas, é narrada de forma crua com seus rancores, suas desesperanças e, por vezes, suas conformidades com o sistema que os afoga.
Ponciá desde muito jovem provou-se extremamente talentosa - se alfabetizou, em maior parte, sozinha, e auxiliava a mãe na criação de vasos de barro. Quando pequena, possuía enorme curiosidade em relação ao mundo, sonhos que almejava realizar - o que acabou a levando para a cidade em busca de melhores condições de vida.
No entanto, com o passar do tempo, seu coração, antes otimista e idealista, passa a se entristecer com o peso da sua dolorosa conclusão: não havia muito o que ela pudesse fazer; estava fadada à falta, ao vazio, longe de transformar seus maiores desejos em realidade.
Luandi, seu irmão, também deixa sua casa e acaba se inspirando em um soldado negro da cidade, chamado Nestor. Atraído pela possibilidade de ordenar e não ser somente aquele forçado a obedecer de cabeça baixa, ele se torna um aprendiz desesperado (subconscientemente) em tentar fugir da opressão social.
A mãe deles, sem nome, tem um papel apropriado na história: uma mãe que tenta reunir a família dispersa pelo mundo, pois, em sua sabedoria, entende que a família é, por vezes, nossa única garantia de apoio.
A história é rápida, mas a escrita, dura e dolorosamente realista, conta um enredo que pesa em nossas gargantas. Um enredo necessário, que me fez perguntar diversas vezes: quantas Ponciás existiram e ainda existem? E Luandis? E Nestores?
Luto para encontrar alguma forma de descrever apropriadamente esta história, mas nenhuma palavra faz jus ao que "Ponciá Vicêncio" conta e representa. Somente me impressiona como Conceição consegue dizer tanto em tão poucas páginas, em como ela consegue fazer com que pensemos em uma obra sua mesmo depois de meses após a finalização de nossa leitura (como é o meu caso).
Amei como a autora descreveu o marido de Ponciá sem vilanizá-lo completamente, mostrando que ele não é uma pessoa inteiramente ruim, mas que tornou-se quem é por influência de diversos fatores. A história do avô de Ponciá é cruel, mas tão verdadeiramente triste que nos traz lágrimas aos olhos. Particularmente, achei criativíssima a descrição de tempo, nos trazendo à reflexão e imergindo na consciência cada vez mais longínqua da protagonista. As metáforas são sensacionais, e fazem cada vez mais sentido à medida que a história se desenrola. A mensagem final é belíssima, emocionante.
Minha única ressalva, que me fez refletir sobre se deveria descontar meia estrela ou não (o que acabou não acontecendo) é a forma como a personagem Bilisa é nos apresentada e, então, "desaparece" (para não dar spoilers a ninguém) poucas páginas depois. Acredito que entendi claramente o que a mulher representa, mas gostaria de ter tido um pouco mais de tempo com ela. Minha pergunta, no entanto, é: não seria proposital? Não seria uma forma de Evaristo nos fazer sentir na pele a dor da ausência repentina e inesperada?
Conhecendo pouquíssimo autora, já posso afirmar que, certamente, nada que ela escreve é por acaso. Recomendo que leiam esta obra magnífica e tenham essa experiência sem igual o mais rápido possível.