@literatoando 10/05/2020um livro incrível - ig: @litera.toandoEste livro, escrito por uma das autoras que mais admiro, vai falar através da sua escrevivência, contando histórias que misturam fatos e ficção, as experiências da vida na favela e do projeto de desfavelamento da segunda metade do século XX aqui no Brasil. A própria Conceição descreve este livro como ?(...) uma criação que pode ser lida como ficções da memória. E, como a memória esquece, surge a necessidade da invenção.?.
Durante a narrativa maestral, vamos conhecendo aos poucos as pessoas que compõem o enredo desse livro, os habitantes da personagem principal - a favela. A autora vai contando suas histórias, suas dificuldades, suas vivências, seu passado e seus sentimentos de uma forma que faz com que o leitor se conecte com cada um deles e cada dor seja transmitida direto para aquele que lê. Muitas realidades dentro da favela são retratadas, a exemplo disso temos: as mulheres lavadeiras; aqueles que vivenciaram situações advindas do período escravocrata; os que a solidão ou o descaso social levou à loucura. Vemos histórias cujo enredo levou a uma escolha quase impossível de ser feita, mas teve que ser. Pessoas doentes física e psicologicamente, mas que tinham apoio uns aos outros. Embora naquele período a questão do tráfico de drogas ainda não ter se espalhado e tomado conta dessas regiões marginalizadas como hoje em dia, a violência acontecia e no livro são retratadas mulheres violentadas fisicamente e sexualmente também ou cuja única opção para a sobrevivência foi a da prostituição. Tem ainda aquelas pessoas que encontraram na cachaça a válvula de escape pras suas angústias e crianças que são obrigadas pelas circunstâncias a desempenhar o papel de adulto muito cedo. Para além dessas histórias tristes, tem mulheres extremamente livres, que trabalham, se sustentam e escolhem o rumo da própria vida; a pessoa que luta, tem orgulho de si mesmo e da sua cor e, por fim, pessoas que gostam de onde moram por ser resultado das suas lutas, um sentimento inebriante de união, mesmo diante das adversidades.
A obra é recheada de histórias quase palpáveis. O sentimento de banzo, a zanga, a ancestralidade, a religiosidade, a temática da educação e da luta contra o analfabetismo através do investimento cheio de esforço na educação são temas recorrentes. As injustiças sociais e a hipocrisia são escancaradas pelos personagens. A gente vê a injustiça quando a autora descreve a insalubridade da favela, a fragilidade dos barracos, o aperto das suas casas, o não acesso das pessoas que ali estão aos hospitais, pessoas que nunca sequer foram a um médico na vida, mas que moram bem próximas aos seus empregos, do lado das áreas nobres da cidade, onde as mulheres que vão trabalhar como empregadas domésticas são obrigadas a entrar naquela realidade brutalmente diferente da sua, mesmo tão perto geograficamente. A morte ou o sumiço é tema recorrente também, parece que circunda aquela população e que ela não tem impacto nenhum pras pessoas que estão fora dali, além de que até pras personagens crianças do livro já não choca tanto quanto poderia chocar se não fizessem parte do cotidiano delas.
As histórias se encerram com o desfavelamento daquela região, mas com um ar de esperança, frisando a importância da luta pelo conhecimento, da luta em prol dos direitos trabalhistas, da imensa importância da consciência de classe, como o ódio mal direcionado pode ser prejudicial. Este livro é uma fonte imensa de reflexão sobre a sociedade e a escrita da Conceição é um teletransporte. Ela sabe transformar a dor do outro em sua dor, é uma das mais poderosas escritas que já li.