Rodrigo | @muitacoisaescrita 22/01/2020
Senzalas, cortiços e favelas: entre becos e memórias
Com sua escrevivência, Conceição Evaristo utiliza de sua escrita poética para resgatar as histórias contadas para ela, num processo de resgatamento da cultura oral, tão crucial e importante para a cultura africana. Neste romance, é narrado o processo de desfavelização, que interpreto para além do ato de demolir casas e barracos na favela: é um assassinato da diáspora africana, pois o povo ali presente carregava histórias, narrativas, memórias e vivências comuns.
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A necropolítica como regime de governo deixou mais evidente que há um genocídio declarado à população negra e pobre. Genocídio não está relacionado exclusivamente com morte, mas também com implantação de políticas que geram impossíveis condições de existência para determinados grupos sociais, a fim de destruir a língua, religião e cultura de um povo. A necropolítica define o corpo que pode ser assassinado sem que haja comoção; define, também, a política do "tiro na cabecinha" de Witzel no Rio de Janeiro que, para a segurança do Estado, é necessário que mate uns e outros. É a perseguição sistemática de uns para que outros possam viver de forma plena.
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Das senzalas aos cortiços e dos cortiços às favelas, a população negra e pobre nunca teve voz nem direitos. Após a abolição formal do sistema escravagista no Brasil, em 1888, foram atirados à rua, à própria sorte, e nunca foram integrados na sociedade de classes. Estratégias genocidas como o embranquecimento racial e cultural tornaram-se símbolos de salvação da pátria, pois o objetivo era aniquilar a cultura não-branca, ou seja, do Outro.
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O romance de Evaristo e sua escrevivência focam num passado-presente e deixa os seres colonizados falarem por si, evocando a população subalternizada e sistematicamente perseguida pelo Estado, num processo de decolonialidade, dando-os voz e, portanto, tornando-os sujeitos.
"O passado colonial [...] 'não foi esquecido'" (KILOMBA, 2019, p. 213), ele permanece vivo nas relações sociais. No entanto, Conceição transporta os seres colonizados para um local privilegiado, onde as narrativas de oposição que o processo colonial e a posterior colonialidade perseguiram são ouvidas. A própria publicação de "Becos da memória" torna-se um ato decolonial ao analisar o "engavetamento" da obra, escrita no final dos anos 1980, mas publicada em 2016.
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A narrativa perpassa pelo processo de desfavelização e a dúvida que permanece é: quem tem direito à moradia? Os moradores são obrigados a se deslocarem para outros locais ? não de frente à praia, mas outras favelas ? para construir um novo ambiente que atende aos interesses da elite. Esta "migração" é uma das marcas da territorialidade: sabemos onde encontrar pretos e brancos. Desde a escravização dos povos africanos, eles foram submetidos a viver em locais hostis e insalubres. Sabe-se que negros são maioria em favelas, logo a pobreza brasileira tem cor e é preta. A destruição dos barracos na história de Conceição é para além do simples ato de demolir: é um assassinato da diáspora africana, de um povo que compartilhava uma cultura em comum e que tinha uma vivência.
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Conceição Evaristo relembra as narrativas e histórias que a colonialidade impôs como falsas, como conhecimentos sem valor científico, cultural, educativo, político, etc, ou seja, que sofreram um epistemicídio, para utilizar um termo elaborado por Sueli Carneiro. "Somos eu, somos sujeito, somos quem descreve, somos quem narra, somos autoras/es e autoridade da nossa própria realidade. [...] torna-mo-nos sujeito" (KILOMBA, 2019, p. 238).
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Referências:
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. 1ª ed., Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.