spoiler visualizarSenhor J 04/12/2021
Beco é um memorial aos antepassados de Conceição Evaristo
A primeira edição de Becos da Memória foi lançada em 2006, aproximadamente vinte anos depois de sua escrita, ocorrida entre 1987/88. A obra, que nas palavras de Conceição Evaristo ?foi o seu primeiro experimento ficcional do que seria a sua escrevivência?, traz elementos que hoje, sem dúvida, já pertencem ao universo ficcional da autora.
Becos da Memória recebeu em 2020 uma bela edição da editora Pallas em parceria com a TAG. A edição feita em capa dura com uma bela arte de capa e projeto gráfico assinado por Kalany Ballardin da TAG experiências literárias, conta ainda com dois posfácios assinados por Simone Pereira Schmidt e Maria Nazareth Soares Fonseca.
Narrado a partir das memórias absorvidas por uma menina de 13 anos, Maria Nova, o romance vai se desenrolando de maneira não linear, mas compreensível. No centro da obra está o drama de moradores pobres de uma favela passando pelo processo de destruição e desfavelamento. O universo ficcional de Becos é totalmente fraturado, assim como estão fraturadas as vidas dos moradores da favela com o processo de desfavelamento.
O mote da história, a desigualdade, nos aparece a partir de fragmentos, não apenas de histórias, mas de vidas que se confundem com a história. A partir das percepções de Maria Nova vão se alinhando denúncia social e lirismo trágico, dando forma ao quebra-cabeça que nos apresenta seres que carregam em seus corpos a dor da exclusão, mas que ousam sonhar e ter desejos. Nutrem a vida com lembranças.
Becos da Memória é um romance da coletividade. Em passagens como a da morte de Filó Gazogênia, por exemplo, tem-se essa percepção: ?[...] o silêncio estava em tudo e em todos. Os vizinhos mais próximos, vendo a janela e a porta tão escancaradamente abertas, chegavam. Filó Gazogênia não percebia mais nada. Atravessava a última porta. O rosto suavizou apesar da dor. Nos lábios, talvez um ligeiro sorriso?. O medo de partir sozinha em seu velho barraco foi superado pela presença dos seus vizinhos. O alento em meio a dor. A morte, até então encarada como um momento solitário e de saudades, ganha contorno de rito de passagem para um estágio superior.
Personagens como Maria Nova, Negro Alírio, Bondade, tio Totó, Cidinha-Cidoca, Vó Rita, entre outros, são instrumentos usados por Conceição Evaristo para apresentar a favela como essa grande senzala dos tempos modernos.
O passado colonial, evocado por Conceição, transforma a favela nesta extensão sub-humana das senzalas do período escravista. Lugar de desigualdade e esquecimento. A favela, como a senzala, é o lugar dos desprezados, aqueles que a parte nobre da sociedade enxerga apenas como objetos, meros serviçais; ?[...] Ela elogiou o trabalho de Ditinha, gostava do trabalho da moça?. Não há reciprocidade nos tratamentos. O que existe é a sujeição disfarçada de esperteza para a sobrevivência, ?Ela [Ditinha] era esperta, fazia tudo que mandava?. Existe o imaginário de que o padrão de beleza e perfeição estava referenciado nos ricos e superiores. Como acontecia com Ditinha que se sentia feia ao olhar a patroa e perceber sua elegância e beleza.
Maria Nova escreveu suas memórias para que todos não fossem esquecidos. Para que a História não os lançasse no lugar do esquecimento e da irrelevância. A menina-mulher toma para si a tarefa de transmitir ao mundo o recado. E graças a ela o final dessa história tem o poder de conduzi-la a um novo começo e a nós também.