Joao.Ricardo 23/04/2020
Ótimo livro, escrito com muita maestria.
"Nossa Senhora do Nilo" é sincero. Nos imerge aos interiores de uma escola ruandesa que tem como finalidade institucional preparar suas alunas para serem a elite feminina do país.
Violência, professores europeus, igreja católica, segregação, tensões entre grupos, moralidade permeiam a obra. E revelam também a atmosfera de Ruanda que precedeu o terrível massacre que houve no país.
Eu nunca havia lido narrativas literárias sobre Ruanda, tampouco autores ruandeses. Realmente, Scholastique Mukasonga foi precisa na obra. Ela é uma sumidade literária, ganhadora de muitos prêmios, referência de escritora, atualmente não vive em Ruanda e foi uma das sobreviventes do massacre ocorrido no país.
O ritmo da narrativa me fez querer digerir cada micro-detalhe que revela um sistema intrincado que sustenta um emaranhado de relações complexas. Repare que são micro que revelam um complexo macro.
É por isso que acredito que Mukasonga primorosamente restringiu sua narrativa em uma pequena escola nos interiores de Ruanda, em que as filhas da elite ruandesa se formam mulheres de elite. A composição desse grupo de alunas, como são tratadas, como elas se relacionam, o que lhes é ensinado é muito interessante para compreender a ideologia vigente na época e, pasmem, não diferencia do que temos hoje: saberes eurocentrados com uma pitada de religiosidade para formar a elite parca de um país.
O que mais me sobressai, e essa que é uma das belezas da literatura, é que a narrativa reflete muito do que estamos vivenciando hoje em nosso país. É preterido e conivente um discurso de ódio em que é importante eliminar e humilhar o outro pelo simples fato de ele ser outro. No caso do livro as forças responsáveis por gerir a escola, governo, igreja, ONU, Bélgica e França, coadunam ativa ou passivamente com a situação.
Outro aspecto importante é a denúncia sobre a violência sexual dos padres da igreja católica, que diante da agonia dos outros aspetos fica até secundária. Mas, é sempre importante salientar que dentro da igreja católica as denúncias de violência sexual são várias.
"Nossa Senhora do Nilo" é para fortes leitoras e leitores e fundamental para quem pretende votar em J. Bols. (acharam que fossem escapar dessa?). Pois, é capaz de acender uma chama na consciência de cada um que mostre que o próximo não precisa ser exterminado somente pelo fato de ser outro. E, em uma esfera de consciência muito mais apurada é capaz de lembrar o eleitor da base cristã de J. Bols. "Amarás o teu próximo como a ti mesmo" (Marcos 12:31).
Infelizmente, a maioria de seus eleitores não se preocupa com literatura, tampouco com a literatura de um país marginalizado, e sequer conseguem relacionar literatura e política. Uma pena.
Boas leituras.