Victor Dantas 13/08/2021
A Homossexualidade em tempos de epidemia da AIDS: o estigma pela lente da literatura queer. #45
Existem livros que a gente lê, ama e quer conversar com alguém sobre.
E existem livros que a gente lê e sente na obrigação de espalhar sua mensagem para o mundo se pudéssemos ter essa oportunidade.
Alguns chamam esses livros de "favoritos da vida", eu os chamo simplesmente de.... Vida.
"As Fúrias Invisíveis do Coração" se encaixa perfeitamente nessa categoria. E agora irei espalhar sua mensagem para o mundo, ou pelo menos, para os skoobers brasileiros rs.
Devo, antes, lhe avisar que eu li esse livro em junho de 2021, mês do orgulho LGBTQIA+, desde então eu adiei sua resenha devido compromissos da faculdade e a escrita do meu tcc. Mas, agora, chegou o momento de falar dele.
Afinal, os “livros-vida” são chamados assim pois sua leitura não se esgota. O livro vida acompanha a gente para sempre desde a primeira leitura.
Bom, vamos lá então.
O nosso protagonista se chama Cyril Avery. O cenário é: Irlanda.
O recorte temporal vai desde a década de 1950 até meados dos anos 2000.
Assim, trata-se de um romance de formação, e sim, iremos acompanhar as décadas de vida do nosso Cyril. E sim, pelo nome do título da resenha você deve pressupor que o Cyril seja um homossexual que vai presenciar a epidemia da AIDS que marcaram as últimas décadas do século XX. Aliás, que século complexo esse, não acha? Para mim, é "O Século".
Feitas as apresentações que eu mais acho relevantes, vou me ater aqui ao nosso protagonista Cyril e o contexto histórico que dá vida ao enredo da belíssima obra do John Boyne. Outras informações é melhor que vocês saibam lendo, ou melhor, vivendo junto com o Cyril suas aventuras, desventuras, paixões, decepções, medos, erros, falhas, conquistas, alegrias, prazeres e afins. Afinal, como eu disse, são décadas de vida.
E sim, o Cyril foi um sobrevivente da epidemia da AIDS, e quando eu uso aqui "sobrevivente" eu considero a sobrevivência do Cyril não só em relação a não contaminação com o vírus, mas, principalmente, a sobrevivência aos desafios mais difíceis que nós da comunidade LGBTQIA+ pode enfrentar: preconceito, intolerância, ódio, indiferença, opressão.
Dito isso, e retomando aos aspectos que irei destacar aqui nesta (não tão) breve resenha, começaremos, primeiro pelo contexto histórico, afinal, para um leitor geógrafo o espaço e tempo são os elementos mais essenciais para compreender como uma sociedade se comporta, se relaciona, e criam sua realidade (materialmente e subjetivamente).
Como eu disse anteriormente, o cenário é o país irlandês, e como se trata de um romance de formação, iniciamos a história em meados da década de 1940, a década mais sangrenta do século XX frente ao Nazismo Alemão e o Fascismo Italiano.
Bom, "felizmente", as consequências da 2ª Guerra na Irlanda não foram tão violentas assim comparadas a outros Estados em quais Hitler e seu exército invadiram, e entre os Estados europeus que não foram invadidos por Hitler, estava a Irlanda. Mas, obviamente, como em toda guerra a sociedade tende sempre a se posicionar de um lado ou de outro, e no caso da 2ª Guerra, um lado era "os aliados" e o outro era Hitler e Mussolini.
Essa polarização também se fez presente entre os irlandeses e isso é retratado no livro, e os efeitos dessa polarização se desdobram na política interna da Irlanda, quando o país passa por conflitos entre partidos irlandês conservadores de inspirações fascistas e partidos republicanos.
Ao final da guerra, em 1946, nasce o nosso protagonista. Cyril.
Agora, dá um pulo para a década de 1970 quando o nosso Cyril já um homem adulto, gay, que vive na Irlanda, que na época era declarado um país conservador tendo a Igreja católica como forte aliada.
Esse é o cenário que implicará nos primeiros de muitos conflitos internos que o Cyril enfrenta quanto a sua sexualidade, quanto a sua humanidade, seus valores e princípios, e obviamente esses conflitos serão mediados por relações que o nosso Cyril irá ter com outras pessoas que são fundamentais nessa obra. Mas, sobre estes, eu manterei o anonimato. Como eu disse antes, tem certas informações que é melhor saber vivendo o livro.
Esses conflitos internos, obviamente não se encerram na década de 1970, afinal, até meados da década de 1990, a epidemia AIDS era um paradigma social, um tabu, "a doença dos gays". Se bem que, ainda é possível encontrar hoje, em 2021, pessoas que pensem que a AIDS é uma doença "criada" pelos gays. Ah, nada como uma bela ignorância!
Enfim, retomando o raciocínio, como eu vinha dizendo, os conflitos e dificuldades que o nosso Cyril vai enfrentar ao longo de suas décadas de vida não se encerra na década 1970, e nem se limita a Irlanda, aliás, toda a opressão vivenciada pelo nosso protagonista em seu país de origem, fará com que ele tome a decisão de se exilar.
Daí, portanto, nosso Cyril, num primeiro momento, se muda para Holanda, e é lá que as primeiras mudanças positivas começam a ser mais presentes na vida do nosso Cyril enquanto as negativas passam acontecer com menos frequência. É na Holanda, que o nosso Cyril decide , finalmente, ir ao encontro da sua sexualidade, da sua subjetividade e portanto, felizmente, nosso protagonista se liberta das correntes da vergonha, da culpa, as quais o prendiam desde sempre.
Da Holanda, seguimos para o Estados Unidos, devido a um acontecimento muito importante, a vida do nosso Cyril dá outro giro de 360º e o nosso protagonista vai se aventurar na terra do Tio Sam.
Ao chegar nos EUA, Cyril não só se depara com outra cultura, outra sociedade, outra língua, mas, também se depara com outro lado da epidemia da aids. O lado humano.
Cabe ressaltar, que apesar de todo processo de amadurecimento quanto a sua sexualidade, o nosso protagonista, ainda carregava consigo algumas crenças, ou melhor, pré-conceitos em relação a Aids, até que ele chega nos EUA. E é nos EUA, que a mudanças mais significativas irão acontecer na vida do Cyril, o que antes era apenas uma questão de "aceitar a sua sexualidade", nos EUA, Cyril se depara com questões mais profundas, com traumas e dores mais viscerais, envolvendo sua família, amigos, sua origem: a Irlanda.
Estaria Cyril pronto para esse reencontro?
Com uma narrativa objetiva, circular, e por vezes, poética, John Boyne escreveu um romance que extrapola a atmosfera da ficção indo de encontro com uma questão e/ou debate social que durante muito tempo foi considerado tabu, ou foi interpretada com o olhar de ódio, intolerância, ignorância que é a epidemia Aids.
Ao articular esse fenômeno com a sua literatura queer, Boyne dispõe possibilidades, alternativas, perspectivas ao leitor, leitora, leitxr para fazer uma nova leitura, ou quem sabe sua primeira leitura sobre a epidemia Aids.
O autor deixa muito bem evidenciado em sua prosa que discutir Aids não é discutir "doença gay", "epidemia gay", "ameaça gay" ou qualquer outro absurdo inventado por ignorantes, pelo contrário, discutir Aids é discutir saúde pública, é discutir a biopolítica que o Estado implanta para decidir os corpos que merecem viver, e os corpos que merecem viver.
E sim, discutir Aids é discutir também a comunidade gay, mas não porque foram os gays que criaram a Aids, mas sim porque a sociedade criou a Aids Gay, colocando assim mais uma corrente em volta desses corpos além das correntes existentes como homofobia, intolerância, violência, ódio e outras.
Mas, o mais importante, John Boyne nos mostra que discutir aids é discutir a vida.
Leia "As Fúrias Invisíveis do Coração"!!!!!