@garotadeleituras 23/02/2018
Um convite para abrir a caixinha das lembranças.
Depois de um hiato longo, um sonho com o pai e a doença da sua cachorra Mila, Carlos Heitor Cony lançaria “Quase memórias”, um livro “quase tudo”: quase romance, quase biografia, quase crônica, sucesso imediato em 1995 e prêmio Jabuti em 1996. O livro tem inicio numa recepção de hotel, aonde certo dia o protagonista recebe um embrulho, dentre tantos que lhe chega com frequência, que o fará rememorar fatos da sua vida, principalmente a infância e acontecimentos marcantes ao lado do pai. O pacote como o autor enfatiza durante todo o livro, tem a técnica com o nó peculiar rompido apenas pelo corte e o “cheiro do fazer-se lembrar”, da brilhantina, da alfazema e claro, a manga, marcas registradas do seu Ernesto.
Além do choque inicial em reconhecer as peculiaridades do pai, falecido há dez anos, ocorre uma mistura de curiosidade e saudade, suficientes para colocar o escritor imóvel na sua sala e apresentar ao leitor lembranças particulares; é muito mais do que contar sobre acontecimentos, é o retrato de uma relação plena entre pai e filho, e sobre as memórias que foram construídas e muito bem vividas no cotidiano. O narrador-personagem discorre sobre acontecimentos da infância e juventude no Rio de Janeiro, pequenos acontecimentos que parecem comuns, mas que o tempo pintou com saudade e orgulho essa simpática figura de pai, que sempre tinha a solução para tudo: o dom de aprontar gafes e fazer vergonha ao filho quando é descoberto roubando manga no cemitério, especialista em inutilidades e fracassos como o projeto de fabricar perfumes que quase provocou um acidente no braço do amigo Giordano ou a viagem que nunca aconteceu para a Itália, mas que de alguma forma foi contada como um sucesso para os amigos do trabalho. Era um grande professor de geografia com aula prática para ensinar os pontos cardeais ao nascer do sol ou quando se transformava no melhor construtor de balões nas noites de junho, ritual esse, símbolo de conexão infantil com seu Ernesto. Se a relação era permeada pelo amor e admiração, também houve mágoas quando descobriu segredos não compartilhados, um “quase herói”, que deixou um legado de saudade e fragilidade, mas sempre disposto a fazer grandes coisas todos os dias.
Amanhã... Amanhã vou guardá-lo tal como o pai o deixou. Quando digo “amanhã” nesse tom (amanhã...) penso nele quando dizia, cada noite antes de dormir: “Amanhã farei coisas grandes.” Mesmo quando não fazia nada, para ele o viver, o chegar à outra noite e se prometer que no dia seguinte faria grandes coisas era, em si, uma grande coisa. (p.264)
Quase memória foi o primeiro livro lido do autor, gostei do estilo da escrita e pretendo conhecer outras obras, - falecido agora em 2018 (durante a leitura), com um legado incrível segundo a crítica -, Cony fará falta. Esse é o tipo de livro que conforme você tende a acumular lembranças, mas você se identifica com a mensagem. Através das reminiscências, somos convidados a lembrar daquilo que nos “formou” e o que acumulamos durante a caminhada. O autor foi extremante feliz ao misturar fantasia e realidade, justapondo entretenimento e emoção, de forma leve e amorosa, uma homenagem linda ao pai e ao passado. Recomendo a leitura!