Piter 05/12/2023
O que há no escuro de si e dos outros?
De tanto ouvir falar bem, dei uma chance e não me arrependi. Um livro que me deixou com a curiosidade atiçada, pelos eriçados e olhos esbugalhados. Recomendo para quem ama um suspense sobrenatural com elementos aterrorizantes unido a uma mitologia bastante criativa, de desenvolvimento cativante e um olhar para os horrores cotidianos.
"Nova Jaguaruara" é o título homônimo da cidade onde se passa o livro. Localizada no interior do Ceará, todas as noites às 00:00, as luzes se apagam sem restrição. Nessa hora, coisas muito estranhas começam a acontecer. Há, contudo, um passado sombrio o qual explica essa condição, e é exatamente nele onde a obra mira, acertando com zelo.
O escritor soube direitinho como armar os mistérios, fazê-los interessantes e depois propor uma explicação convincente a qual fizesse o leitor aguçar as orelhas. Fiquei atento a cada detalhe, formulei teorias, tentei achar as pistas e coletá-las de forma minuciosa. Ainda assim, o enredo conseguiu me surpreender, e todos os plots aqui inseridos têm uma elaboração bem orgânica cuja experiência nos conduz pelas páginas a partir da dúvida acerca do esquisito, do paranormal, bem como das nuances do pós-vida.
Toda a ambientação construída criou o clima aterrador o qual a obra se propunha. Fiquei admirado pela cidade. Gostaria que ela fosse real (e se for, quero visitá-la um dia). Os ambientes e espaços são tão palpáveis, tão instigantes, que parecem vivos. A representação do Ceará soa fenomenal, desde os aspectos linguísticos, até espaciais e de cultura. Sem dúvidas, a igreja e o núcleo urbano são pontos altos da trama.
Toda a atmosfera me transportou da aflição ao simples estranhamento. Trouxe-me sentimentos de raiva, agonia e apreensão. Algumas cenas foram um baque para mim, o que considero totalmente positivo. Os personagens têm "a cara" do nordeste; comovem e extrapolam o lugar comum, por mais que lhe faltem mais "personalidade" atribuída a objetos pessoais, estilos, manias e outros fatores de singularização.
Gostaria, ainda, que o terror sobrenatural estivesse mais envolvido no desenrolar da história, com mais recursos narrativos e uma redução do aprofundamento nos personagens. Penso que o texto se concentra por demasia no passado de algumas figuras, ou se atenta demais às histórias de outras. O n° de personagens também poderia ter sido mais ameno, já que não senti que todos têm tanta relevância para a execução do enredo.
Queria ter visto + horror em sua pura forma. Os elementos de pavor psicológico estão de parabéns, mas faltou mais aparições e mais ameaça física. Os momentos do meio para o final entregaram satisfatoriamente nesse tópico, em especial porque são crus e aparecem no instante decisivo.
Do meu repertório, vi vários flertes com a literatura gótica, já que são trabalhados diversos conceitos, como o locus horribilis, a figura monstruosa, personagens de moral ambígua e temas pra lá de insalubres. Uma prova de que nossos interiores e nossas cidades tropicais podem ser tão assustadoras quanto os consagrados locais da ficção terrífica. Tudo isso, com leves esbarrões no realismo mágico (especialmente no arco de Bonifácio).
Em resumo, foi uma obra que me concedeu ótimos insights enquanto a lia no ônibus ou em casa. Percebi vibes de "Missa da Meia-Noite" do começo ao fim, como também referências a outras produções de terror folk e lendas urbanas brasileiras. Com certeza lerei mais exemplares do autor. Gratidão à Beatriz Paludetto por ter indicado a obra no canal dela, pois vim de lá.