spoiler visualizarSollyane 19/06/2021
Terror dicotômico, conveniente, confuso e incoerente
Meia noite. Inexplicáveis quedas de energia desconectam os moradores de Nova Jaguaruara da luz por um minuto, durante todos os dias, à meia noite, independentemente da fonte, seja vela, lampião ou lâmpada. Compondo o mistério, que gera constantes apreensões, os arredores de uma antiga igreja abandonada solidificam uma área marcada por desaparecimentos, desde o século XX. Não obstante, eventos sobrenaturais com ligações malignas preenchem uma maldição implícita, mas não tímida, que rodeia a pacata cidade cearense. Eis que, quando um grupo de pesquisadores chegam a essa cidade, com o objetivo de coletar dados para uma possível instalação de torres de energia eólica, a curiosidade não cessa na ignorância para os visitantes, não sendo, assim, um impedimento para que duvidem dos fatos lhe apresentados, no que concerne às crenças municipais marcadas pelo teor fantástico e improvável. Diante disso, somando o sigilo consensual dos moradores locais às sensações inquietante de descrença de Vicente, Rose, Maria, Felipe e André, os “forasteiros” ficam desamparados e à mercê da armadilha perfeita, quando defronte ao incomum e anormal.
Escrito por Mauro Lopes e publicado, de forma independente, no ano 2017, o enredo discorre sobre como o sobrenatural pode ganhar forma quando se tem uma brecha: dois portais distintos, neste caso. O dinheiro ganho por Bonifácio nos exorcismos, bem como a aplicação dele em frutos materiais. Nesta vereda, a maldição conquistou espaço e cobrou, por isso, na infestação demoníaca, se limitando às fronteiras da cidade. Certamente, define-se, assim, o protagonismo do livro: os demônios, ainda que haja personagens notórios que tentam atenuar e conter as consequências dos portais. No entanto, embora a intenção fosse a de manter o mal num perímetro cercado e esquecido, os relatos e as histórias acerca disso foram passadas de gerações a gerações, como se fossem uma fábula, ou melhor, uma lenda. Desse modo, ainda que as tentativas de silenciar quaisquer rumores, fora da cidade, funcionasse, não podia se dizer o mesmo no que diz respeito aos próprios moradores, com o passar dos tempos. A sensação de segurança, conquistada pelo abandono de Jaguaruara em prol de um recomeço em Nova Jaguaruara, criava justificativas para que a prova fosse tirada, como uma boa lenda faz. Aos infortúnios que o maligno arquitetou, a queda de energia foi a mais sagaz, pois atraía tanto os valentes como os céticos, tendo como cúmplice poético e sarcástico, a antiga igreja rumo ao litoral. Logo, no que se espera de uma premissa envolvente, o romance “?Nova Jaguaruara”? marcou presença com ênfase.
Todavia a qualidade e lógica do mistério vai decaindo progressivamente, página a página, ao decorrer do livro. Isso porque, em um primeiro momento, o sentimento do leitor é de entusiasmo, pois não há explicações racionais que liguem o terror da igreja às quedas de luz. De maneira a intrigar, inúmeras possibilidades passam pela mente do leitor, na mesma intensidade que isso acontece nas leituras de um romance policial/investigativo, alavancando, dessa maneira, uma vontade de continuar a leitura para desvendar o enigma. Porém, ao passo que os fatores que conduziram à possessão e a destruição em massa da cidade invalidam-se ao grupo de visitantes, transparecem, portanto, os gritantes problemas da narrativa, que vem a se tornar seletiva, e, devido a isso, incoerente e conveniente.
Sob esse prisma, preenchido por uma dicotomia notória, o ponto principal do livro vem a ser o mais ambíguo e, infelizmente, um dos mais decepcionantes. Estruturado como um livro de terror, que tem o objetivo de deixar o leitor acordado durante a noite sombria, devido a um medo residual que não se esvai após a leitura, em “?Nova Jaguaruara”? o demônio tem um coração bom e abre exceções, ao invés de ser maléfico sem distinções quanto aos humanos e eventos caóticos. Não resguardando a crítica a apenas esse exemplo, Bonifácio igualmente abriu os portais, imprudentemente, guiado pelo seu ego de super-herói, embora essa faceta fique velada pela ingenuidade dele; para as trevas e tornou-se o vilão, sendo que outrora fora a luz e a representação esperançosa de um salvador e prolongador de vida aos moradores de Jaguaruara. Nesse sentido, no que tange a simetria do desenvolvimento acerca de uma situação ou dos personagens, o livro constrói-se de maneira disforme e grotesca.
Outrossim, visto que se tem, maiormente, a noção coletiva de que o demônio é incorruptível e de forma alguma benevolente, a não ser que isso resulte em uma vantagem, numa espécie de jogo, questiona-se o porquê de o diabo parar o tempo, entrar no carro de Vicente, apenas para bater um papo, em uma espécie de trégua. Além do mais, ainda retrocedeu o evento de atropelamento do filho de Vicente, para que ele pudesse salvá-lo. Sem nenhuma contrapartida benéfica ao ser maléfico, ele simplesmente foi gentil e humano, sem ganhar nada em troca. Muito racional se fosse um humano, e não um DEMÔNIO. É compreensível amaldiçoar uma cidade inteira, comer a carne dos humanos, contudo, quando se trata de Vicente, o demônio é só good vibes, e nem o amaldiçoou por usar o dinheiro, como aconteceu a Bonifácio e a terceiros relacionados a ele.
Além do mais, Vicente, Rose e Pedro, não sabendo se aquele dinheiro traria consequências negativas às suas vidas ( deveria ser uma hipótese muito improvável e remota a eles, tadinhos), resolveram mesmo assim ter posse do dinheiro, arriscando que novos portais se abrissem para que novas maldições surgissem. Logicamente, isso deveria ter acontecido, uma vez que o Vicente, após uma crise de medo e covardia, resolveu doar a maior parte do dinheiro ao primeiro indivíduo que viu. Nisso, esse dinheiro deveria amaldiçoar esse azarento indivíduo e todos os terceiros que fossem beneficiados a partir dele, criando uma cadeia sem fim para a maldição se espalhar pela sociedade, e novos relatos de apagões de luzes, bem como demônios devorando as pessoas, acontecessem. Isso se daria porque da mesma forma que os demônios “rastrearam” o dinheiro, oriundos das possessões, usado na construção da igreja, que veio a se tornar amaldiçoada, teriam que fazer o mesmo para o uso do dinheiro que Pedro, Rose e Vicente se apropriaram e espalharam. Pelo contrário do esperado, o mal que inflamou Jaguaruara mostrou-se tênue na cidade renovada de Nova Jaguaruara. Não obstante, enquanto os habitantes da cidade primogênita eram devorados ao anoitecer, o pai de Pedro fez, por anos, nessa mesma cidade o seu lar doce lar.
Em um último nuance acerca disso, enalteço minha colega de leitura coletiva, que fez o melhor comentário reflexivo sobre as incoerências desse livro. Neste caso, em especial, da atitude, ou melhor, da inatividade de Vicente: “ ? Meu filho é atropelado, mas eu vou ficar aqui no carro, conversando com o satanás ?”. WTF!
Outrossim, ainda que a caracterização do mal seja o foco do livro, não basta apenas ela para sustentar a história de forma inteligente. A fim de fazer jus à ficção, os personagens, necessariamente, devem ser desenvolvidos de forma nada substancial, de modo que fique claramente evidente o propósito deles. Nessa análise, um dos maiores erros, e posteriormente, uma das maiores lacunas da história, é a personagem da professora. Primeiramente, o leitor é iludido pensando que o fantasma visto pela mãe da professora possui uma ligação com a história principal. Nisso, aceita-se a monotonia e questões existenciais chatas do personagem, que não levam a lugar nenhum, porque deve ter um propósito, certo? Porém, não há nada disso. Nenhuma revelação ou surpresa. O leitor nem sabe o porquê desse fantasma do pai aparecer, no qual, o escritor poderia ter criado uma situação legal para isso. Talvez a professora poderia ser neta do Bonifácio?! Assim sendo, nem lembrar o nome da professora consigo, pois ela nem ao menos teve uma participação singular no decorrer do livro. Inesperadamente, em um certo momento, parece que ela quer encruzilhar alguém e matar essa pessoa, mas nem isso fica claro, sendo, no fim das contas, um delírio coletivo essa atitude, se não a personagem em si. Não estando distante disso, no início do livro, o escritor abriu espaço na narrativa para contextualizar a história de vida de Clemência e os traumas que sobreviveu. Mas, após esse capítulo, Clemência se torna um peso de porta para sua família adotiva. Ou seja, todo o desenvolvimento do personagem foi jogado no lixo para ela ser apenas um consolo para o personagem principal, que seria o Bonifácio. Portanto, tanto a professora quanto a Clemência foram um recurso, usado de forma desequilibrada, para preencher páginas, não sendo suas inutilidades um fator preocupante ao autor.
Em uma cidade infestada, e, de certo modo, governada por demônios, o medo pode ser sentido, bem como os olhos vermelhos podem ficar à espreita da mente, observando-o. Com uma premissa instigante e muito bem pensada, o escritor soube criar a vontade, de quem esbarra neste livro, de lê-lo. No entanto, não soube mantê-la até o fim. A partir do momento que a curiosidade, defronte a figura sombria da igreja e o medo que permeia os apagões de luz, se esvai, a qualidade da obra se afunila. Questões ambíguas que, por sua vez, tornam-se confusas ficam cada vez mais evidentes no desenrolar do livro. Incoerências, dicotomias injustificáveis e incredulidade sobressaem-se aos pontos positivos, de acordo com o sentido que a história foi traçada.
Essas críticas supracitadas invalidam e desmerecem a obra do autor? Depende. Minha personalidade de leitora sempre busca analisar criticamente as obras, além de apenas ter uma experiência de leitura, como um passatempo. Reitero, é o meu instinto como aspirante a escritora que me inclina a analisar dessa forma, não sendo melhor ou pior o meu jeito. Mas, é perceptível que, se caso você procure por essas problemáticas, criticadas por mim no decorrer desta resenha, você encontrará. Isso pode deixar o livro menos belo, com uma experiência menos divertida, quando se percebe que para muitas coisas não há lógica, tampouco explicações acerca do porquê determinadas situações acontecerem, ou não. Consequentemente, deixam a leitura maçante.
Portanto, acredito que o grande problema de “?Nova Jaguaruara”? tenha sido o planejamento, que afetou as peripécias do enredo. A escrita de Mauro Lopes, contudo, foi bem elegante, mas não basta apenas saber escrever, é preciso saber contar a história também. Ainda, por derradeiro, sendo esse livro a primeira obra de Mauro Lopes, desejo todo o desenvolvimento e aprendizado possíveis a esse autor nacional. De uma forma ou de outra, valeu a experiência.