spoiler visualizarDIRCE 25/12/2020
De tudo ficou o quê?
Pelo número de leitores desse livro que debulharam-se em lágrimas , cheguei a me questionar se eu não teria que , durante a leitura, deixar um lençol ao meu lado – manteiga derretida do jeito que sou. Mas que nada. Não derramei uma só gotinha. Fiquei até meio apreensiva: será que estou me tornando uma insensível. Não , claro que não. Acontece que no livro, nos deparamos com cruezas, dor, indiferença , injustiça, maldades, julgamento errôneo , inúmeros comportamentos e sentimentos ficcional que, ao se contraporem com os que ora vivenciamos, nos dão uma sensação de déjá vu e , como não bastasse ,de brinde vem uma pandemia que nos faz acreditar que se trata de um pesadelo. Só que não . Não se trará de uma distopia, não se trata de uma ficção e , tampouco de um pesadelo. É tudo muito real, demasiadamente real , fato esse, que justifica a ausência de lágrima durante a minha leitura. Mas como o que importa é o drama do Charles, vamos a ele.
Pobre Charles! É ele o protagonista: um homem de 32 anos , um padeiro que aprendeu essa profissão como uma espécie de robô, pois era dotado de uma deficiência intelectual considerada severa (68), entretanto, apesar dos pesares, demonstrava interesse pelo aprendizado o que o capacitou para um cirurgia revolucionária que havia alcançado grande êxito com o ratinho cobaia- Algernon. Nem preciso dizer que a cirurgia do Charles foi bem sucedida , né? E como...Um salto “olímpico”: de 68 passa a 200. Entretanto, pobre Charles...Seu Q. E ( quociente emocional não acompanhou seu Q.I). O menino Charles tornou-se o seu fantasma . O vislumbre do seu passado lhe era torturante. Não poderia ser diferente, haja vista que esse vislumbre revelaram a Charles o quanto suas impressões eram equivocadas, o quanto sua mãe o rejeitara em razão do filho real não corresponder ao filho real. Revoltante.
Um aspecto relevante no livro é a memória. Devo confessar que a minha já me tem pregado peças - triste constatação. Entretanto, se há algo que não me esqueço é do poema Resíduos do Drummond . Nesse poema Drummond diz que de tudo ficou um pouco, não muito. Sim. Do que me foi dado conhecer, no meu tempo de estudante, sobre a Alegoria da Caverna ( aplicada à educação) ficou um pouco, não muito. O que ficou: os aprisionados na caverna seriam os homens desprovidos da educação, dos livros, do conhecimento, da informação. Sombras são projetas, e quem as projeta é a LUZ DO CONHECIMENTO. Uma vez alcançada essa luz não se pode retornar mais à escuridão. Foi o que aconteceu com Charles. Ficou muito complicada a sua convivência com as pessoas que o rodeavam, quer fossem as da padaria , quer fossem os cientistas das universidades ou até mesmo sua ex -professora, enfim, seu nível de conhecimento foi além do esperado . Sua genialidade o permitiu a alcançar um nível de conhecimento surpreendente, e o resultado dessa escalada foi como se as pessoas do seu convívio haviam se transformado nos acorrentados na Caverna ( embora na Alegoria quem conhece a luz jamais retorna as trevas)
Mas voltemos ao papel relevante da memória. Comumente nos deparamos com pessoas com a memória afetada pelas mais diversas razões – sejam elas um acidente, uma demência -e elas voltam a ocupar seu lugar nas trevas, mas de tudo fica um pouco ( ele novamente: Drummond. Já no caso do Charles, ficou o quê? Bem , leiam os livro.
Não consigo terminar esse meu comentário sem citar novamente versos do poema Resíduos do Drummond , sei lá achei tão pertinente.
(...) o insuportável mau cheiro da memória.
Mas de tudo, terrível, fica um pouco,(...)
(...)fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão.
Às vezes um rato.( Drummond usa da conotação)
PS.: Chegando ao final desse meu comentário, concluí que tenho que corrigir uma injustiça. O fato de eu não ter gostado do estilo empregado na narrativa – relatórios de progressos diários - não me permite apequenar a obra. Ela merece no mínimo 4 estrelas, uma vez que da leitura que fiz , percebi que de tudo ficou muito.