Maria - Blog Pétalas de Liberdade 10/04/2018Resenha para o blog Pétalas de Liberdade "Havia um Ladrão que ganhava a vida roubando os peregrinos na estrada entre Meca e Medina. Era um Beduíno que havia nascido nas dunas e nunca teve pai. Os sacerdotes também eram estranhos para ele, que nunca deu importância ao profeta ou às suas leis. Como foi criado por várias mães, as quais tinham morrido, todas elas, antes que ele aprendesse a arte de bater carteiras, o Ladrão recebeu pouco amor e nenhuma instrução. Mas sempre fora livre." (página 17)
Assim começa a história, narrada em terceira pessoa, ambientada no século XIX, no deserto do Oriente Médio. Uma caravana vai cruzar esse deserto, e por provavelmente estar carregando muitos objetos valiosos, virará alvo de ladrões da região. O livro é dividido em nove partes, e em cada parte iremos acompanhar e conhecer um personagem dessa história.
O primeiro é um jovem Ladrão, um Beduíno que nasceu nas areias e conhecia o deserto como a palma da mão; muitas vezes serviu como guia, mas decidiu abandonar o bando de criminosos do qual teve que fazer parte há algum tempo, para tentar roubar essa caravana e enfim poder ser mais rico e livre. Mas o Líder do bando, um dos personagens mais cruéis do livro, também estava de olho na caravana.
Temos uma jovem Noiva, zoroastrista (o Zoroastrismo era a religião predominante no Irã antes da invasão muçulmana) que tem visões e está indo encontrar o futuro marido, acompanhada de sua Escrava e de um rico enxoval. Um Cambista indiano participou das negociações do casamento, aliás, ele participava de tudo o que pudesse lhe dar alguma vantagem.
Há um Peregrino estrangeiro e idoso, as pessoas não entendem muito bem o que ele fala, mas ele está de olho num Dervixe, um homem que desperta sua desconfiança por viver sumindo e aparecendo da caravana. O Sacerdote é um rapaz fazendo a tradicional peregrinação às cidades sagradas dos muçulmanos, Meca e Medina.
E, por fim, temos um Cadáver, o corpo de um homem que está sendo levado nessa caravana pra ser enterrado em outra cidade, juntamente com objetos de valor. E o mal cheiro desse corpo em decomposição, junto com as extravagâncias da noiva, a implicância do Sacerdote com as pessoas de outra religião e as interferências do Cambista em busca de alguma vantagem, vão ser motivo de muita confusão nessa viagem.
É super interessante a forma como as histórias desses personagens vão se interligando, e sempre através de um misterioso alforje (uma espécie de bolsa). O que tem dentro desse alforje? Será que é o tesouro mais precioso da caravana? Será que algum desses personagens é o dono dele? O fato é que, a cada parte, ampliamos nossa visão sobre a trama e seus personagens: aquele que nos parecia insignificante em um capítulo, torna-se o protagonista no outro.
Esse é um daqueles livros que a gente resolve ler só mais um capítulo, aí termina aquele capítulo e quer ler a próxima parte para saber mais sobre o personagem seguinte. E assim a gente devora as 300 páginas rapidamente, eu li a obra em dois dias. Vi em algum lugar que, durante a leitura, o leitor consegue até sentir a areia do deserto, e eu concordo. O brinde enviado pela TAG junto com o livro foi uma espécie de essência, e realmente é possível lembrar desse cheiro em algumas partes. É muito fácil visualizar o deserto e os outros locais onde a trama se passa, sentir as fragrâncias e o calor durante a leitura.
"Só que a noiva era uma criatura histriônica. Tudo que ia, poesia ou canção, era compartilhado com a Escrava; tudo que escrevia, em seguida lia em voz alta para a Escrava. Em segredo, a africana desconfiava daqueles sinais mágicos, tinha medo do papel que podia transportar vozes humanas." (página 180, me cantei por essa descrição do poder da escrita)
A escrita da autora me pareceu mais poética, fazendo alusões à coisas abstratas em alguns momentos, e mais fluida em outros. Eu gostei bastante da parte da Escrava, sobre como ela, mesmo depois de ser liberta, apegou-se e pegou para si a missão de cuidar da noiva. Mas a minha parte e o meu personagem favorito foi o Cambista indiano: durante a vida, ele teve que se reinventar inúmeras vezes, se adequar às situações pra sobreviver.
"Durante aquele primeiro inverno de sua vida, ele se viu perdido e sem rumo, sem um tostão e morrendo de frio em Constantinopla. Aquilo o convenceu, mesmo depois, que ele preferia morrer de calor do que de frio e que não importava quais estações teria de viver outras vezes na vida, contanto que não fosse o inverno". (página 128)
É interessante como a gente tem personagens tão diferentes na obra, essa diversidade me parece fruto da religião da autora, a Fé Bahá'í, que prega essa união entre os povos. Alguns personagens são muito jovens como a Noiva, outros são idosos como o Peregrino. Alguns não tem uma religião definida, e outros são fanáticos como o Sacerdote. Chega a ser engraçado esse fanatismo dele, que pensa que se fizer suas obrigações religiosas, como o sacrifício de ir à cidade sagrada e jejuar, Deus imediatamente lhe dará algo em troca, independente das outras coisas erradas que ele fizer, como sua falta de amor ao próximo.
"Entreviu de relance a mesma escrava negra, as mesmas criadas zoroastristas. Que injustiça era aquela? Será que aquelas infiéis e idólatras - aquelas mulheres! - ficariam atravancando seus passos até Medina? Era inimaginável! Por que estava sendo acossado por elas, quando tinha feito o que devia fazer, quando ele havia superado a si mesmo no que dizia respeito à obediência, quando certamente ele merecia mais de Deus? Onde estavam Suas bênçãos? E o que dizer de todo o dinheiro que ele havia gastado para adquirir aquelas bênçãos? O Sacerdote tinha um forte sentimento de dívida em aberto." (página 256)
O trecho abaixo sintetiza bem a história, que também vejo como a busca de cada personagem por um sentindo para sua vida, uma busca por respostas que alguns deles nem sabiam ao certo como formular em perguntas:
"Portanto, essa é a nossa história, ponderou o Cadáver, recostado em frágil dissolução na parede norte da ruína. Uma história de podridão delicada e de sutil decadência, que dia a dia desenrola seu carretel. Uma história de confiança, uma história de mudança, uma história de desapego e vínculo, como o perfume no deserto, que perdura na memória de homens saturados de si mesmos." (página 326)
A edição da TAG é caprichada, com capa dura, páginas amareladas, boa revisão e diagramação com letras, margens e espaçamento de bom tamanho. A capa (difícil de fotografar) tem cores variando entre o tom laranja e o marrom, as imagens da capa e do interior do livro foram obtidas através de ilustrações bordadas e depois fotografadas e editadas. Exite um glossário no final do livro para ajudar a entender alguns termos, há algumas palavras na obra que não são tão conhecidas pela maioria dos leitores, mas uma pesquisa rápida no Google ou no dicionário resolvem, e isso é bom para enriquecer nosso vocabulário.
"O vento trazia o perdão" (página 159)
Fica a minha recomendação de leitura para quem procura um livro que traga diversidade, e que nos faça viajar com a história. Esse foi o primeiro livro que li da TAG, apesar de já assinar há meses, e foi uma experiência bem bacana essa de ter uma edição tão caprichada, ainda mais por ser acompanhada pela revista que expande muito o nosso entendimento da leitura.
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http://petalasdeliberdade.blogspot.com.br/2018/04/resenha-livro-o-alforje-bahiyyih.html