Rafa 24/07/2017
Um excesso aqui, uma falta acolá
O quarto e último livro da saga de Eragon – O Ciclo da Herança – foi proporcional ao restante da saga. Herança parte de onde fomos deixados em Brisingr, em meio à batalha, e batalha é a palavra que certamente resume o volume. Ao longo de quase 800 páginas nós somos imersos na guerra contra o Império de Galbatorix, vindos da Campina Ardente, até culminar na chegada a Uru’baen. Algumas revelações pouco esplendorosas são feitas, ainda que importantes, nesse ponto o contraste com os volumes anteriores é a maior praticidade em detrimento do excesso de mistérios e enigmas vistos anteriormente.
Quando eu falo de proporcionalidade me refiro à característica da obra: longa, permeada de descrições, inúmeros detalhes de lutas e batalhas e reflexões pessoais por parte do protagonista. E nisto, acredito que o autor tenha errado a mão. Praticamente não nos deparamos com um substantivo que não seja acompanhado de um adjetivo, na maioria das vezes, redundante ou repetido. O mesmo acontece com as descrições de paisagens e pessoas, já feitas antes, mas que o autor volta a repetir quase como se quisesse tatuar essas imagens na nossa mente, muitas vezes limitando a capacidade imaginativa do leitor. Essas descrições repetitivas funcionam mal principalmente com relação a alguns personagens que acabam por não conquistar a simpatia do leitor (pelo menos não a minha), como, por exemplo, Arya que em cada cena que aparece é descrita com seus cabelos esvoaçantes e sua expressão, parecendo a mim que o autor quer nos convencer de todo modo que a personagem é encantadora e admirável como Eragon a vê. O ponto, eu acredito, é que os personagens precisam sim ser descritos, mas, como mencionei, é preciso dar margem a imaginação do leitor para que nós possamos criar uma figura simpática dos personagens. É isso o que acontece com os personagens secundários, sem ponto de vista, como Murtagh, Galbatorix, Glaedr, Orik, entre outros. Nós não temos tanta informação a respeito do que eles pensam e de sua personalidade, mas nós podemos imaginar com base nas informações presentes e tanto gostar como detestar.
Para mim, ao longo da leitura de todo o Ciclo, o que mais me chateou é o fato de eu não conseguir simpatizar de forma alguma com o protagonista e o último volume não apresenta nada de novo a respeito de Eragon que me fizesse mudar de ideia. Ao longo da saga, praticamente tudo foi dado de “mão beijada” ao personagem, ele praticamente não desenvolveu nenhuma capacidade ou habilidade com excelência pelo próprio esforço e sim por transformações mágicas e magia no geral. Além disso, parece haver quase uma obsessão do autor com machucados, o personagem a cada passo que dá se arranha, se machuca, sente dor.
Em contrapartida, seu primo Roran, ainda que valendo-se de algumas proteções mágicas concedidas por Eragon, que o mantiveram vivo em muitas ocasiões, desenvolveu sua força física, habilidade em combate e inteligência estratégica sozinho, através dos seus inúmeros desafios. Talvez a real intenção do autor fosse essa mesma: que nós admirássemos mais os humanos comuns do que aqueles cheios de poderes. Alguns podem dizer que as aventuras do Roran foram surreais, mas na verdade são as mais plausíveis, tudo o que ele fez eram coisas possíveis de serem feitas por alguém como ele e é claro, nem todas teriam permitido que ele sobrevivesse, mas é onde entra a proteção mágica concedida pelo primo.
Nós temos bem menos contato com alguns outros personagens, mais presentes nos volumes anteriores, como Murtagh, Nasuada, Orik, ainda que os dois primeiros tenham tido sua vez em meados do livro.
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[CONTÉM SPOILER]
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Alguns mistérios não foram solucionados, como o caso de Angela, a herbolária, fato que o autor menciona nos agradecimentos. Eu não acho negativo que o mistério a respeito dela tenha ficado em aberto, mas sim que sua participação não tenha correspondido ao que prometia em Brisingr.
Por fim, acredito que a batalha final contra o invencível Galbatorix, que por 100 anos ninguém ousava desafiar, não foi proporcional ao seu marketing. Poderia ter sido um conflito mais acirrado e, arrisco dizer, seria até plausível que ele sobrevivesse. Ainda assim, acredito que a Alagaësia ainda terá muitos problemas com certas criaturas cujos ovos não foram encontrados e estavam próximos de eclodir. Infelizmente, não será nosso Cavaleiro de Dragão Eragon a lidar com esses problemas, como vimos, ele resolveu partir para sempre da Alagaësia sem motivos realmente plausíveis, ainda que insistentes.
Enfim, essa resenha não são somente pontos negativos. Eu realmente gostei da saga e mergulhei na sua fantasia. Admiro muito a ousadia do autor em investir no uso de idiomas (ainda que inspirados em muitas línguas nórdicas ou tolkienianas), no trabalho com raças diversas (ainda que os elfos, em particular, sejam muito pouco simpáticos e interessantes como os da Terra-Média), etnias, gêneros, com a capacidade de descrição de cenas muito específicas, como as de batalha, a consistência do seu estilo e a não entrega ao “fan service”. O universo dos dragões pareceu pela primeira vez ter algum protagonismo literário e isso é muito positivo. Quem leu claramente percebeu as inúmeras referências e inspirações do autor, em Tolkien principalmente, positivas, mas também prejudiciais em alguns aspectos, principalmente por ser inevitável comparar.
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