Ca Melo 29/09/2018Tão necessário..."Uma pessoa normal não fazia esse tipo de coisa por vontade própria. Eu gostava de sentir dor. Não, eu não gostava. Eu precisava. Era o que me mantinha sã. O sangue, o corte, a ardência, o ritual… tudo aquilo me mantinha sã. Mas depois vinha a vergonha. Eu não tinha mais vontade de sair de casa. Colocar os pés para fora da quitinete significava ter que esconder as marcas, conviver com o medo de descobrirem. Ficava ansiosa quando me perguntavam algo, me preocupava em encontrar algum assunto completamente aleatório. Era como se viver fosse uma grande corrida de obstáculos que eu não tinha como ganhar, não importava o quanto tentasse. Tinha medo, muito medo, de que as pessoas descobrissem o inferno em que me encontrava só olhando nos meus olhos. E o medo era real". (p. 282)
Sabe aquele livro necessário? Não haveria outro adjetivo para resumir os meus sentimentos ao terminar Céu sem estrelas da autora Iris Figueiredo. Publicado pela Editora Seguinte, o livro nacional passa, acima de tudo, uma mensagem de conforto e esperança. ❤
Nos últimos anos diversos livros, principalmente os mais voltados ao público jovem, vem trazendo histórias sobre transtornos mentais, principalmente a depressão. Mas dos livros que eu li poucos conseguem trabalhar com o tema de forma responsável. Digo isso porque alguns desses livros desenvolvem personagens que sofrem com problemas desses tipo, mas sempre de forma muito negativa, colocando apenas no final do livro uma nota explicativa de apoio. E isso na verdade sempre me incomodou. Mas Céu sem estrelas é diferente, é uma das poucas exceções!
A história de Cecília é comovente e foi impossível não sentir empatia por ela. Me identifiquei com várias questões: seja em relação à ausência do pai, a relação com o padrasto, a experiência com o primeiro namorado e o problema de aceitação do corpo. Por mais que essas coisas não me afetam na mesma intensidade com a protagonista conseguia me conectar muito com os seus sofrimentos, mesmo que não concordassem com muitas atitudes que ela toma, mas é importante ressaltar que cada um reage de uma maneira e não cabe a quem está de fora julgar. Cada uma sabe o inferno que possui internamente.
"Parte de mim sabia que era irracional, mas a outra repetia o mantra: Você é gorda. Você é feia. Você como feito um animal. Ninguém te acha legal. Ninguém te acha bonita. Ninguém te acha interessante. Nem seu pai gosta de você. As mesmas palavras, sem parar. Não dava para apertar um botão e desligar os pensamentos'. (pp. 43-44)
A narrativa se divide com a perspectiva de Bernardo, enriquecendo ainda mais as temáticas trabalhadas. Ao mesmo tempo a construção desse personagem é apaixonante, a autora criou um personagem real, que foge tanto do estereótipo de príncipe como de “bad boy incompreendido” que estamos habituados a encontrar nos livros. Bernardo é um personagem real, que erra, que acerta, que sofre e precisa aprender com as consequências de suas escolhas.
'Às vezes me perguntava o que queria da vida, para onde estava indo, o tipo de coisa que a gente se pega pensando de madrugada, quando ninguém pode entrar na nossa cabeça e ver o quanto é uma bagunça". (p. 184)
E por falar em personagens reais, como não falar da representatividade nesse livro, e não só apenas por ter uma personagem gorda e de cabelos crespos. Os amigos de Cecília tem sua importância, vivência e importância pontuadas ao longo das páginas, seja o racismo velado com um garota negra estudante de direito, seja pela falta de acessibilidade e as dificuldades de uma pessoa com deficiência física que depende de uma cadeira de rodas.
Eu sou muito suspeita para falar, mas gosto de livros que trazem os relacionamentos familiares em destaque. E nesse livro tem treta em vários aspectos, e que independente das condições financeiras, em nenhum lugar há a representação de família de comercial de margarina. Nenhuma família é perfeita, aliás, nenhum ser humano é perfeito. Lembro que na FLIPOP 2018… Eu fui! a Iris Figueiredo falou sobre a importância das mulheres mais velhas e da relação mais próxima entre tias, avós, sobrinhas, netas e primas no Brasil, e em Céu sem estrelas essa relação, por mais problemática que seja, aprece bem nos almoços na casa da vó de Cecília, inclusive com a presença daquela tia chata, rs.
Outro diferencial que do livro é ter como uma de suas ambientações a universidade, já que no Brasil os livros voltados para o público jovem se passam mais no ensino médio. A representação da Universidade Federal de Fluminense, no estado do Rio de Janeiro, traz muita familiaridade para mim com a Universidade de São Paulo, inclusive ao pontuar as condições deficientes na estrutura. Ah, e sim a história se passa em Niterói e fico muito feliz quando os autores nacionais desenvolvem suas histórias em solo brasileiro enriquecendo o nosso país com suas tradições e cultura!
Com uma leitura fluída e rápida, além de uma história envolvente fica difícil interromper a narrativa e os acontecimentos que marcam tanto Cecília e Bernardo. Me arrependo de não ter lido esse livro antes, a até agradeço a Willy que leu e me fez lembrar que o livro estava esquecido na minha estante. Inclusive, confiram a resenha dela no blog Entre nos Mundos 😉
Com várias referências a livros, como A Redoma de Vidro, de Sylvia Plath, Iris Figueiredo deixou fez a diferença, deixando a sua mensagem clara e objetiva:
"Nem sempre a gente é capaz de lidar com tudo o que está acontecendo por conta própria, mesmo que ache o contrário. Aí precisamos de uma pessoa com quem conversar". (p. 281)
site:
https://abookaholicgirl.wordpress.com/2018/09/29/resenha-ceu-sem-estrelas-de-iris-figueiredo/