spoiler visualizarBabizb 16/11/2023
Você tem a vida inteira
A história me prendeu e me emocionou do início ao fim.
Lucas Rocha é um dos (poucos) autores brasileiros presentes na minha estante, por acaso, e nunca fiquei tão satisfeita por um acaso tão bem construído.
Falando em acasos, esta trama abraça bons encontros *por acaso* que mudam a vida de Ian, um dos personagens principais que descobre o diagnóstico de HIV.
A partir disso, li uma forma de escrita que nunca tinha me aventurado antes, e que com certeza talvez não me interessaria à primeira vista numa livraria. Graças à curiosidade e vontade de desafogar a estante, pude presenciar uma abordagem respeitosa, informativa e bela sobre o HIV.
É claro que nem a doença nem a escrita trazem tópicos romantizados sobre viver com o vírus, mas ao dar vida a Ian e Henrique, Lucas Rocha mostra uma história que foge dos rótulos preconceituosos e sombrios em relação à doença. Aquilo visto à primeira instância como um ponto final, ganha agora um ponto e vírgula; uma *vida inteira* de novas possibilidades, tratamentos e rede de apoio a quem é diagnosticado com a soropositividade.
Pude acompanhar ? quase como uma pessoa próxima? o desenvolvimento de cada personagem: Ian, Henrique, Vanessa, Eric, e principalmente o de Victor. Como um personagem que não carrega o vírus consigo pôde ser tão emblemático para uma trama que a envolve? Victor traz consigo o estigma que a grande maioria das pessoas sem informações suficiente prolifera. Traz falas e atitudes preconceituosas e como consequência li de camarote sua casca ser quebrada com um choque de realidade. Por que se moldar em meio a tantas angústias e preconceitos se quem ele amava estava bem ali com toda prevenção?
?- Eu fui um babaca. - Foi. Mas eu também me peguei pensando, de uns dias para cá, que nada disso é fácil para você. - [?] a verdade é que a gente só pode tentar se colocar no lugar dos outros, porque quando chega a hora e a gente está em uma situação como a sua, nenhum conselho do mundo faz as coisas que somos ensinados a pensar desaparecerem de hora para outra. Os seus medos são só seus, assim como *os dele são só dele*.?
O virar de chave da percepção de Victor foi tão brusco quanto a decepção repentina de Henrique, que se guardou mais uma vez em sua armadura ao se deparar com outra pessoa que se entregava até saber do ?desafio? que caminhava ao seu lado.
?Vou para o trabalho, volto para casa, me enfurno no quarto, faço minhas refeições e vejo TV, sobrevivendo sem viver, esquecendo de olhar para os lados e para as coisas bonitas existentes ao meu redor.?
Mais ao fim do livro, somos surpreendidos pelo contra ataque de Carlos, o primeiro ex de Henrique que lhe deu as contas quando mais precisava, incluindo na patifaria uma viagem para outro país planejada há no mínimo um ano. Com um retorno surpresa e a vontade de voltar para Henrique como se nada fosse, percebemos o retrato escancarado de Carlos como a mais bela representação da sociedade ignorante e preconceituosa por escolha própria.
?O narcisismo dele me embrulha o estômago: *ele* estava solitário, *ele* queria voltar, *ele* queria fazer parte da minha vida, *ele* se sacrificaria para estar ao meu lado, *ele* se arriscaria, *ele* queria fugir. *Ele, ele, ele.* Não havia nada naquele bando de palavras que falasse de fato sobre um *nós*, nada que me fizesse olhá-lo com alguma coisa além de uma curiosidade misturada com desconfiança.?
?Carlos. Eu não acredito que ele teve coragem de me expor dessa maneira. Como alguém pode ser tão egoísta??
Todo e qualquer desgosto a mais que poderia aflingir o coração e a alma de Henrique é barrado pela união, amor e força demonstrados por Bibi, Mad Madonna, Kara Parker, Nicolle Lopez, Ian e Victor, que, em meio aos acordes raivosos de Cazuza interpretando ?O tempo não para?; juntos de balões sendo arremeçados no muro da casa de Carlos, com tintas nas cores do arco-íris, pagaram na mesma moeda o ato preconceituoso com um ato de força.
Todas essas demonstrações de uma rede de confiança e suporte para Henrique apenas reforçou aquilo que mais existia e que foi construído dentro de si ao longo de alguns anos de resistência: sua força!
?Quando nossos lábios se encostam, não é um beijo feroz, mas sim o tipo de beijo que parece selar um acordo.?
?[?] e quando, por fim, Cazuza canta que vê o futuro repetir o passado e que vê um museu de grandes novidades, arremesso o último balão, que explode na cor vermelha.?
?[?] só precisamos de um clique para ter uma fotografia perfeita, que enquadra as quatro drags com cores arco-íris e eu com uma camisa branca pintada com o símbolo de luta ao combate a AIDS, sorrindo ao lado das frases pichadas acima das tintas: HIV NÃO MATA. PRECONCEITO SIM.?
Ao fim do livro, Ian, que também enfrentava a realidade da soropositividade também teve seu final feliz: Vanessa descobre através de um antigo teste em sua mochila o diagnóstico do irmão, e os dois finalmente abrem mais uma janela de sua relação fraterna (muito bem escrita!) de confiança de de família; além de agora um novo amor, sem a pressa e o medo do novo.
?Fico feliz em saber, porque agora posso dizer que você pode contar comigo para o que precisar ? responde com maturidade pegando uma batata frita e mastigando-a. ? E não, não estou brava com você.?
?Só conversamos sobre HIV quando eu quero falar sobre o assunto ou quando ele tem alguma dúvida. E estamos juntos desde então. E estou feliz desde então. Não estou sozinho. Está tudo bem.?