Paulo 20/06/2022
Toda a sabedoria humana não vale um par de botas curtas
Publicado em 1881, a obra inaugura a fase realista do “bruxo do Cosme Velho”. Quando mais novo, assim como vários brasileiros, li o livro para o vestibular. Na época, não entendia as sutilezas e ironias de Machado de Assis. Reler esse clássico passados mais de 20 anos, já com alguma bagagem literária, foi uma experiência totalmente diferente. Arrebatadora.
Brás Cubás é um “ne fait rien” – um herdeiro rico que não faz nada de útil com sua vida. Era um moleque encapetado, mimado pelo pai. Depois, um jovem que se envolvera com a prostituta Marcela, com quem gastou rios de dinheiro. Seu pai resolve mandá-lo para Coimbra, em Portugal, onde se forma bacharel, mas foi um estudante medíocre e superficial, fez somente o mínimo para obter o diploma.
Retornando ao Brasil sua mãe falece e inicia um romance com a manca e humilde Engênia, que não é levado a diante devido à diferença de condição social de ambos.
Resolve então seguir os planos de seu pai: casar-se com Virgínia e tornar-se político. Começa a namorar a moça, mas Lobo Neves se casa com ela e lhe arrebata a candidatura. Pouco depois, possivelmente de desgosto, seu pai falece e ele briga com sua única irmã, Sabina, e seu cunhado, Cotrim, pela herança. Lobo Neves e Virgínia têm um filho.
Brás Cubas e Virgínia se reencontram e se tornam amantes, encontrando-se em uma casinha alugada na Gamboa. Cubas se encontra casualmente com seu amigo de infância Quincas Borba, quase um mendigo, que lhe furta o relógio de bolso.
Lobo Neves quase flagra Virgínia e Bras Cubas em adultério e se muda da capital para se tornar presidente de província. Assim, Virgínia e Bras Cubas rompem o relacionamento.
Quincas Borba herda uma boa quantia de parentes de Minas Gerais, compra um relógio novo para Brás Cubas e eles ficam amigos. Quincas lhe apresenta sua filosofia do “humanitismo”.
Brás Cubas, então com 40 anos, fica noivo de Eulália, de 19 anos, mas ela falece repentinamente. Ele então consegue o mandato de Deputado, mas não consegue ser ministro.
Já reconciliado com sua irmã, Brás Cubas filia-se na Ordem Terceira e pratica a caridade para pobres e doentes, no que ele qualifica como a fase mais brilhante da sua vida. Mas depois de três ou quatro anos se enfada desse ofício e deixa-o.
Além da morte de seus pais, Brás Cubas vê morrer Lobo Neves, Marcela, sua noiva Eulália, Dona Eusébia e Dona Plácida – essas duas senhoras humildes com quem convivera – , e seu amigo Quinca Borba, que enlouquecera.
Ao final da vida, aos 64 anos, Brás Cubas não foi ministro, nem se casou, nunca trabalhou, mas em sua perspectiva sua vida vazia tivera como pequeno saldo não ter filhos. Em suas próprias palavras: “não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”.
Durante a vida, Brás Cubas e seu pai viviam preocupados com a aparência, com o que os outros pensariam ou falariam, com os respeitos humanos. Já morto, o narrador e personagem Brás Cubas tem a grande virtude da verdade, da autenticidade ao reavaliar sua própria vida, o que constitui o paradoxo de maximizar o realismo da narrativa, ainda que contada por um morto.
Essa perspectiva do narrador defunto permite uma visão intertemporal e transcendental da própria vida e Machado de Assis usa e abusa dessa técnica para destilar seu humor e ironia ferina sobre a sociedade fluminense da época.
A leitura da obra me fez relembrar “Madame Bovari” (1856), pela temática do adultério e pelo vazio das vidas de Emma e Cubas, bem como a “Morte de Ivan Ilitch” (1886), pelo absurdo da ausência de sentido na vida.
O bruxo do Cosme Velho, nessa obra de transição para o realismo, atinge plena maturidade literária e nos apresenta seu exacerbado pessimismo inspirado na filosofia de Schopenhauer. Com efeito, o autor retrata a vida de Brás Cubas de forma a demonstrar que a condição humana é insolúvel e a vida é mero sofrimento inútil.
Pensei que a personagem teria sua redenção no final do livro, quando se dedica brevemente à caridade e vive uma fase declaradamente boa, mas o enfado e o tédio logo levaram Brás Cubas a abandonar também essa atividade.
Machado fala de temas universais, como o sentido da vida, o adultério, o pessimismo e o matrimônio, em romances que retratam a vida fluminense do século XIX, com maestria ímpar e olhar aguçado sobre a condição humana. Um gênio. Merecidamente, é considerado nosso melhor escritor.
Pretendo reler toda a sua obra. A cada releitura, novas descobertas e interpretações. Um autor inesgotável.