Ladyce 14/04/2020
Seria muito fácil brincar com o título do livro de Domenino Starnone, notando que depois de Assombrações, [tradução de Maurício Santana Dias], não conseguimos escapar das fugidias memórias que nos assombram depois a leitura. Obra certa, na hora certa? Talvez. Faz mais de um ano e vira-volta eu me encontro pensando numa ou noutra imagem que ele me proporcionou.
A história é simples. Um desenhista, ilustrador de livros, Daniele Malarico, de setenta anos, deixa Milão onde mora, no norte da Itália, para passar um fim de semana em Nápoles, sua cidade natal. Vai com uma tarefa: cuidar do neto, Mario. Filha e genro não estão disponíveis e têm um casamento em perigo. A tarefa não lhe agrada, mas sente um quê de responsabilidade, ou sua filha não poderia tê-lo convencido a fazer isso. A perspectiva de rever a casa onde cresceu, que é agora habitada pela filha, marido e neto, não é sedutora; deixou-a para trás há muito tempo.
Lá pela década de quarenta do século passado Thomas Wolfe avisava You can't go home again. O lugar onde crescemos e vivemos nos primeiros anos de vida, não é o mesmo que carregamos dentro de nós adultos. Nunca foi. Nunca será. O que dele lembramos não é o que outros veem, não é o que muitos percebem. O contraste entre o homem de hoje e o de ontem traz lembranças que assustam, assombrações que nos mantêm desconfortáveis.
Daniele visita a casa natal depois de passar a vida tentando esquecê-la e os segredos que ali viviam. Ambição, criatividade e a inevitável vontade de ser o que acredita ser seu destino o levaram para longe e para a sublimação do passado. Simultaneamente está se tornando consciente a cada dia da velhice, do corpo que não mais reflete o que foi, o adulto de sucesso. Num fim de semana, confinado na casa da infância contempla no neto, menino irritante e importuno, sua própria infância. Há que confrontar finalmente o menino que foi e que traz dentro de si. Há que confrontar os fantasmas do passado. As assombrações que o aterrorizam.
"...Depois aquela fase passou, mas agora eu tinha mais mortos na memória do que na infância -- quantos conhecidos e amigos meus haviam partido depois de terríveis doenças --, e mesmo as angústias se centuplicaram, tanto que às vezes, em Milão, eu acordava de chofre, certo de que ladrões e assassinos estavam na minha casa, e perambulava insone pelos cômodos, estremecendo quando um reflexo de luz projetava na parede a folhagem móvel das árvores do pátio como se fosse uma presença feroz. O que é que me preocupa -- disse a mim mesmo -- mais do que ansioso, eu deveria estar melancólico: já vivi grande parte da vida e agora eu mesmo me aproximo da hora da morte, caberá a Mario me descobrir atrás de uma porta ou nos cantos escuros da casa. Quantas aparências o cérebro era capaz de por em órbita com seu circuito de emoções. O menino não tinha medo do escuro, mas, depois daquele nosso convívio, talvez ele temesse minhas aparições." [88]
Em Assombrações Daniele Malarico trabalha nas ilustrações de um conto de Henry James, The Jolly Corner. No final do livro acompanhamos as notas que Danielle faz para si mesmo, uma espécie de diário das ilustrações, das considerações que faz ao longo do trabalho. No entanto, não ficamos sabendo do conteúdo da obra ilustrada. Não é gratuita aparição deste conto de Henry James. The Jolly Corner é uma das histórias de fantasmas mais conhecidas de Henry James. Ela descreve a visita que um homem faz à sua casa natal em Nova York depois de trinta e três anos de ausência. Ao visitá-la pondera sobre a escolha profissional que fez, e é obrigado a considerar quem poderia ter sido, caso tivesse escolhido outro destino.
Sutil, este pequeno romance, com menos de duzentas páginas, é rico em sabedoria. Numa quase meditação é uma obra que fica entranhada na alma do leitor. Bela prosa e desenvolvimento do tema. Vale a leitura.