letscia 20/05/2024
57 (2024) melhor sempre significa pior para alguns.
"Éramos as pessoas que não estavam nos jornais. Vivíamos nos espaços brancos não preenchidos nas margens da matéria impressa. Isso nos dava mais liberdade. Vivíamos nas lacunas entre as matérias."
A princípio, uma distopia comum, a fundo, uma obra que exige todo o seu estômago. Admiro todos os que conseguiram ler de uma vez só, pois essa façanha foi completamente fora de cogitação para mim. A cada vez que eu terminava um capítulo, era uma luta continuar. O Conto da Aia é denso e muito pesado. Não achei a escrita prolixa, na verdade, as divagações e quebras de cronologia foram o que fortaleceram a narração e o suspense, dando um quê de obra-prima literária que tanto agrada o leitor - e por vezes incomoda, quando mal feito, o que não foi o caso aqui.
Offred não é a protagonista clichê de uma distopia convencional, aquela corajosa que vai se colocar nas trincheiras pelo bem da sociedade. A personagem é muito humana, sente medo, raiva, impotência e, principalmente, fraqueza, rendição ao sistema que a matou aos poucos, tirando até a última centelha de sua esperança, tirando o seu nome, tornando-a propriedade de outro. Quando lhe dão escolhas degradantes como a prostituição, a vida em uma zona de radiação ou o "abuso controlado" na casa de comandantes, - um eufemismo à palavra que a plataforma censuraria - até a escolha mais miserável parece como a luz no fim do túnel, algo a se prender. Uma coisa é clara: ela odiava a vida de aia e nunca tentou esconder do ouvinte. Digo apenas que, de certa forma, ela também não lutava contra a correnteza, não era uma mayday, não era nada do tipo de aia que se rebelaria, tornando-se uma mártir. E Offred deixa isso muito claro nos momentos finais.
Trata-se, então, de um regime extremamente perigoso. Não havia chances de controlar aquele povo que conhecia o passado, mas as futuras gerações nunca teriam um comparativo viável. Os filmes davam conta do recado quando o assunto era alastrar medo generalizado. Calar a voz dos revoltados a partir de uma segregação social - como a casta das não mulheres -, transformar os inimigos políticos em "coisa", atribuindo-lhes crimes nefastos e tornando as mulheres analfabetas, tirando-lhes a arma do conhecimento, criou um potencial assustador de uma possível futura nação completamente carente de direitos humanos básicos.
A autora foi muito sábia na construção do ambiente. Os pequenos detalhes - como o fato das lojas terem sinalizações ao invés de nomes, já que as mulheres não podiam ler - foram levados bem ao pé da letra, como tudo em Gilead. A manipulação da mídia e o silêncio das outras nações foram algo que, sem sombra de dúvidas, intensificaram o controle desse regime e impregnaram a trama de críticas sociais ótimas que refratam no mundo em que vivemos, ainda que em um grau menos caricato.
Em suma, é um livro com tópicos interessantes e que traz ao leitor um universo bem formulado. Não posso deixar de frisar que, ao mesmo tempo, foi um desafio chegar ao final. A trama tem qualidade, mas é sórdida e, consequentemente, foge bastante daquilo que gosto de ler - preferência que nem sempre inclui apenas histórias leves, mas sim histórias que não contêm abusos tão gráficos e explícitos. O vestibular mais uma vez me tirou da zona de conforto, posso finalmente dizer apenas que foi uma experiência.