spoiler visualizarAriosto 24/09/2018
Sobre o verdadeiro significado da medicina
Médico de Homens e de Almas é tido como um dos grandes clássicos da literatura mundial, fruto de árduos anos de pesquisa pela icônica escritora Taylor Caldwell. O exemplar nos traz a história de São Lucas, fiel apóstolo de Jesus Cristo e um dos responsáveis, junto de Paulo de Tarso, por espalhar a boa nova cristã aos gentios. Contudo, o livro não nos traz a história de Lucas, o Santo, mas de Lucas, o homem, com suas incertezas, dúvidas e demônios.
Desde as primeiras páginas, o personagem Lucano nos é apresentado sob uma aura de santidade e perfeição. De cabelos dourados, pele branca como mármore, porte atlético, bondoso e mente sagaz, é frequentemente comparado a um deus grego. Vivendo na Roma Antiga governada pelo César Tibério, na casa do grande soldado Diodoro Cirino, o garoto rapidamente cai nas graças do senhor. Desde sua tenra infância, Lucano vê-se encantado e atraído pelo ´´Deus Desconhecido``. Seu pai, escravo liberto de origem grega, durante as refeições, antes de servir o vinho, sempre derramava algumas gotas de vinho ao chão em honra de Deus, em um dogma cristão chamado libação.
Lucano, dos seguidores de Jesus, foi um dos poucos que não o conheceram em vida. Entretanto, é fascinante observar que, mesmo a distância, a presença de Cristo foi uma constante na vida do protagonista. Quando menino, Lucas testemunha a visão de uma grande estrela, ardente e brilhante, a cortar o céu noturno. A mesma estrela que, vista pelos camponeses de Belém, anunciara o nascimento do Messias e do salvador da humanidade. Mesmo morando em lugares como Atenas, Antiópia e Roma, Lucano escuta rumores alarmantes acerca de um rabi judeu em Jerusalém, capaz de milagres extraordinários e cujos discursos acerca de amor ao próximo, bondade e união eram capazes de comover o coração mais duro. Um homem cuja presença e olhar eram capazes de oferecer paz e serenidade a quem quer que o procurasse. Ainda por cima, ao longo de 700 páginas nada cansativas, são Lucas se depara e interage com personagens bíblicos famosos, como Pôncio Pilatos, Herodes e os doze apóstolos.
Apesar de seus grandes feitos e milagres próprios, Lucas era um homem mergulhado em dor e melancolia. Seu grande amor da juventude, Rúbria, é acometida de uma grave enfermidade incurável, e acaba morrendo em nome da mesma. Desde então, Lucano decide ser médico, como forma de confrontar o deus desconhecido, jurando levar para longe dos braços da morte o máximo de pacientes que conseguisse e amenizar a dor dos enfermos. Destituído de vaidade e ambição, Lucano abdica de uma vida rica como médico romano em nome de uma vida andarilha, cruzando os mares, visitando inúmeras cidades e parando de porto em porto para atender pacientes, sem nada cobrar ou exigir, na sua ânsia de livrar todos das garras da morte e da doença. Aos poucos, Lucano torna-se um homem sem raízes, distante de seu lar e mergulhado em sua própria solidão, encontrando conforto apenas na arte da cura. Impossível não se emocionar com tais trechos, ainda mais em tempos onde a medicina tornou-se uma profissão elitizada, almejada por aqueles cujo objetivos primordiais são status social e uma conta bancária invejável, ao invés do zelo para com o próximo.
Em arquivos históricos vários, São Lucas é tido como uma figura imponente e capaz de feitos extraordinários. Durante a leitura, vários dos milagres de Lucas são expostos, chegando a curar leprosos, pacientes com câncer em estágio terminal, levantando mortos e, em um dos trechos mais arrebatadores da obra, quando a bordo de uma galé, Lucano desce para o porão do navio, entrando em contato e curando um grupo de escravos remadores acometidos pela terrível e infecciosa peste bulbônica. Durante tais momentos, a autora faz questão de descrever Lucano como um deus, brilhante de radiação e fulgurante de luz, sendo comparado a Apolo reencarnado. Contudo, são Lucas não se dá conta dos próprios milagres, alegando o mesmo à um diagnóstico errôneo ou mesmo pela ação de outrem fora de sua alçada, tornando a leitura ainda mais instigante.
É válido ressaltar que o livro é resultado de mais de 40 anos de pesquisa histórica, e isso se faz perceber durante a leitura. A prosa da autora, dotada de certa cadência poética, nos leva a viver e a praticamente palpar a realidade da época. Os costumes romanos e sua abastada riqueza, o esplendor democrático de Atenas e a mítica Terra Santa são descritas com riqueza de detalhes tamanha como se víssemos pelos próprios olhos. Inclusive, um dos trechos que mais me chamou a atenção foi a avaliação da autora acerca de Roma, um império vivendo a apoteose de seus dias, porém tornando-se, gradativamente, uma nação tomada por mesquinharia, corrupções, jogos de poder e hedonismo selvagem, alimentado por festas extravagantes e sensuais. Um país, que outrora inspirara medo em seus inimigos, tornara-se palco de uma nobreza mergulhada em futilidades e um povo encolerizado alimentado por pão e circo. Segue o trecho: ``A única sociedade que pode durar no mundo, com grandeza, é a sociedade aristocrática, governada, governada por homens sábios escolhidos, sacerdotes, cientistas, poetas e filósofos. As repúblicas geram políticos exigentes, e esses políticos criam sempre, infinitamente, democracias e morte´´.
Não sou uma pessoa religiosa, porém o modo como a autora analisa a figura mítica de Jesus Cristo sob a luz da época é apaixonante. Todos que tiveram contato com o Messias, e entregaram seu coração, sentiam uma paz e gratidão profundas, como do paraíso. Aos seus olhos, o mundo agora parecia coberto de uma luz própria, o amor divino faiscando em cada objeto, em cada planta. E, à medida que as palavras de Cristo ganhavam respaldo entre os simples e os comuns, arrebatados pelo seu discurso, maiores os rumores, rumores esses que chegam aos quatro cantos da Europa. Ler sobre Jesus curar a enfermidade de uma criança e devolvê-la aos braços de uma mãe chorosa, eternamente grata, trazer de volta à vida os mortos e confortar os feridos de coração é de uma beleza ímpar. É incrível que alguém assim já tenha andado pela face da Terra e, se andou, torna-se fácil compreender o clamor despertado pela figura do carpinteiro. Jesus, aos olhos de Lucano, do mundo e dos meus, é apaixonante. Confesso que nunca senti muito entusiasmo ou mesmo emoção ao ouvir sobre a crucificação durante missas ou celebrações religiosas outras, mas nessa leitura me peguei surpreso ao estar em lágrimas ao ouvir da morte de uma pessoa tão bondosa e pura de coração como Jesus. Tudo isso descrito sem a pieguice e sem o sentimentalismo da maioria das obras cristãs.
E, ao final do livro, temos o encontro de Lucano com a figura de Virgem Maria, o ápice da obra. Lucas, como perseguidor da bênção de Deus, sempre sonhou em conhecer a mão de Deus, aquela intocada pelo mal, virgem e pura e, quando ela finalmente aparece, é impossível não se sentir emocionado, seja pela realização do sonho de Lucas ou pela maneira santificada como Maria é descrita pela autora.
Como médico recém-formado, confesso que carregarei as palavras e os ensinamentos desse livro para toda a vida. São Lucas, antes de um santo a ser adorado, foi um médico cuja vida foi dedicada a cuidar dos pobres e oprimidos, abdicando da própria em nome do bem maior. Amou, sonhou, cantou e admirou, e seus feitos ecoam até a modernidade.