Pandora 12/06/2020“O cheiro de sangue me acordou. Era um cheiro incrivelmente intenso, como se eu não o absorvesse apenas pelo nariz, mas pelo corpo inteiro. Como se passasse por um tubo de ressonância, o cheiro se ampliava e reverberava dentro de mim.”
Assim começa esta narrativa.
Este não é o primeiro livro de um autor coreano que eu leio, mas é o primeiro suspense e devo dizer que gostei. Primeiro, porque eu achei a escrita da autora clara e fluida, segundo porque ele é pautado na psicopatia do personagem principal, terceiro que eu achei o final digno.
Dizem que narradores em primeira pessoa nunca são confiáveis e no caso de Yu-jin, a premissa é mais do que verdadeira. Ele não é confiável de forma nenhuma. O tempo todo ele nos deixa em dúvida sobre o que realmente sabe e/ou se lembra. Ele é um enigma que o leitor tem que decifrar. Isso é muito bacana! Há uma aura de tensão permanente que o envolve, corridas pelo calçadão numa atmosfera sinistra e flashbacks confusos que, obviamente, são baseados na visão dele.
Além de Yu-jin, os outros personagens principais são a mãe Ji-won Kim, a tia Hye-won Kim e o irmão adotivo Hae-jin. Claro que isso dá um certo nó na cabeça de quem não entende a estrutura coreana de nomes próprios, mas não é tão grave, já que nosso egocêntrico Yu-jin adora falar dele mesmo.
A história é um pouco lenta no início, porque detalha em várias páginas o conflito de memória de Yu-jin. Isso não incomodou, mas sim o fato do livro não ter capítulos; a divisão é feita em quatro partes grandes. Adoro capítulos curtos, sinto falta de fechamentos constantes, fica mais fácil de assimilar a narrativa.
No início o protagonista é até engraçadinho. Ao falar sobre a mãe e a tia: “Essas duas mulheres me tratavam como uma almofada de poltrona: sentavam-se em cima da minha vida e a esmagavam”. Sobre a possibilidade de ter uma crise epilética na rua: “Não queria que uma desconhecida me visse rolando no chão feito lula na chapa”. Mas depois, quando as dúvidas vão se esclarecendo e a memória, digamos, retorna, a narrativa vai ficando mais densa.
Num dado momento, digno de nota, o narrador faz uma comparação interessante: “Todos os seres vivos, desde o momento em que nascem, aprendem a sobreviver - e parte desse aprendizado é a capacidade de esperar. Há o tempo de comer, e há o tempo de aguardar que a fome se anuncie. Os seres humanos são os únicos animais que não aprendem a passar fome.(...) Essa obsessão por comida não é muito diferente da pornografia de psicopatas. Dentre todas as criaturas da Terra, o ser humano é o mais impaciente com seus desejos.”
Uma curiosidade: num dado momento a mãe e os filhos vão ao cinema assistir à Cidade de Deus. E as opiniões divergem. “Comecei a rir na primeira cena, quando aparece o galo. Ri durante o filme inteiro.”, afirma o narrador. “Estou me sentindo mal”, diz mãe; “não acredito que esse filme é baseado numa história real. A vida pode ser muito triste.” E o irmão: “As histórias felizes geralmente não são verdadeiras.”
Bem, a história deste livro não é nem uma coisa nem outra.